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COLUNISTA
Alexandru Solomon
01/09/2013 - 15h00
Pulinho
 
 

Se é verdade que a idade vem sempre acompanhada pela sabedoria, no caso dele, parece ter havido algum desencontro. O acúmulo de anos nada lhe trouxera de muito especial, excetuando-se a ilusória curva da prosperidade. “Pneu” para os mais objetivos. Quarenta e nove anos. Quarenta e nove, como se sabe é um quadrado perfeito. Ele era um perfeito quadrado.

Num de seus escritos, Marx cita o lema de um hebdomadário publicado durante a Revolução Francesa “os grandes nos parecem grandes, porque estamos ajoelhados”. Ele, não estamos nos referindo ao barbudo, não andava ajoelhado, porque tinha a dignidade e o menisco a preservar. Não necessariamente nessa ordem. Acumulador persistente de pancadas ministrada por uma vida monótona, podia orgulhar-se de, mesmo com a auto-estima em frangalhos, ter sobrevivido. Por obra da fatalidade, os outros lhe pareciam grandes. Possivelmente, por ser ele tão pequeno.

O aluno sem brilho, jogador de futebol medíocre, médico rejeitado por diversos convênios, marido ocasionalmente espinafrado por uma cara metade temperamental e pai caninamente dedicado a filhos remotamente afeiçoados, estava talhado para o papel de zero à esquerda.

Reclamou dos professores, teve de ouvir que passar de ano, no caso dele, era uma bênção. Pedia a bola, durante as peladas, só para ouvir a recomendação para comprar uma, pois a do jogo ele não iria maltratar. Ao se habilitar para prestar serviços para cooperativas médicas, teve de ouvir que ele era um fornecedor da morte exageradamente apressado, razão pela qual se dava preferência aos mais bem sucedidos na arte de prolongar a vida. Ousar reivindicar algo no lar, além da prestação de afeto contratual, era sinônimo de querer ouvir, em altos brados, a cantilena cujo refrão era “vá lamber sabão”. Diga-se de passagem que essa recomendação jamais foi seguida ao pé da letra, por um detalhe de preferências gustativas. Quanto aos filhos, sempre tinham algo mais importante do que dar atenção à carência afetiva do provedor de mesadas.

Teve a idéia de invadir o terreno das artes. Até participou de um concurso literário. Veio a boa nova. Seu trabalho fora selecionado e distinguido com um honroso terceiro lugar. Era a revanche. Ao dar, triunfante a notícia no jantar, a megera comentou, sarcasticamente.

– Se seu trabalho foi o terceiro colocado, o primeiro deve ter sido um cartaz “Não pise na grama” e o segundo, uma plaquinha “Cuidado, cão bravo”.

O trabalho no qual colocara pedaços de si, objeto de chacota. Sua sensibilidade, objeto de mofa. A risada familiar, em vez de elogios pelos quais ansiava. Pior, cada um de algum modo gostava dele, mas era um gostar especial. Ninguém o levava a sério. O processo se acelerava. Estava virando unanimidade negativa no ambiente familiar. Não era no lar que as feridas de fora seriam curadas.

Então onde? Como?

Não, ele não passou a beber, nem tampouco procurou a muleta das drogas. Nem sequer lhe ocorreu buscar fora do lar o que lhe era recusado. Gostava demais daquela célula da sociedade, da qual se considerava núcleo, mesmo que na óptica deles não passasse de um mero vacúolo. A idéia do adultério nem chegou a surgir; portanto, muito menos desceu ao patamar da execução.

Num misto de lucidez e depressão, concluiu não ter mais função alguma no mundo. Esse pensamento que, de longa data, andava pousando suavemente nas suas costas, vergou-o moralmente. Era um processo que a própria insegurança e os fatos aceleravam impiedosamente. Um “Por que está acontecendo isto comigo?” era a pergunta irrespondível.

Não houve gota de água a fazer transbordar a taça. A decisão brotou de súbito. Teria que acabar com tudo. Acabar, sim, pôr termo à própria vida. Basta!

No entanto, não poderia ser uma partida discreta. Nada de deixar um bilhetinho “Fui me suicidar, volto já” nem tampouco tomar uma dose de soporíferos e acordar em melhor companhia. Devia algo aos seus? Nada! Seriam eles os devedores que jamais poderiam saldar a dívida. O pensamento o alegrou. Restava decidir qual seria a forma de colocar em prática o plano.

De imediato, ganhou sua preferência saltar do alto de um prédio. Seria um fim soberbo. Teve imediatamente a certeza de ser esse o meio. Não haveria segunda chance nem arrependimento. Nada de correr e pedir uma lavagem estomacal, após ingerir barbitúricos. Desceria brutalmente de encontro ao asfalto. Estava descartado um salto medíocre do quarto andar de seu edifício. Poderia resultar apenas num monte de fraturas ou, pior, numa invalidez. Sem contar que todos achariam ter ocorrido um acidente, acrescentando automaticamente o epíteto “desastrado” ao seu currículo.

Teria que ser um vôo majestoso, partindo do topo daquele edifício maravilhoso da Berrini. Teria, durante a queda, alguns preciosos segundos para saborear a vista e a sua vingança. Não deixaria carta de despedida, da mesma forma que nenhuma dívida ficaria para trás. Seria apenas a saída digna e elegante do estorvo da vida daqueles ingratos. Uma lágrima tentou brotar, mas ele foi mais forte e a reteve.

Esses pensamentos o acompanhavam enquanto dirigia rapidamente pela marginal. Um vago sorriso passou a iluminar seu rosto, superando o acesso de pieguice. Enfim realizaria algo grandioso, um auto de fé em si mesmo. Mostraria a todos... Ligou o rádio a toda!

O trânsito normalmente pesado fluía com surpreendente rapidez. Pegou o celular e ligou para ela. Queria ouvir sua voz. Em vez disso, foi informado de que a chamada estava sendo encaminhada para uma caixa postal e sujeita a uma taxa... Desligou.

Estava na frente do edifício. Mais alguns minutos e realizaria a proeza. Estacionou, desceu do carro, trancou-o cuidadosamente e caminhou em direção à entrada.

Mas, exatamente por ser domingo, o trânsito fluíra tão bem e... o edifício estava fechado. Devia a sua sobrevida à sua insuperável incompetência. Soltou uma enorme gargalhada e sem ter se acalmado de todo, decidiu dar mais uma oportunidade... aos outros.

Crônica do livro ´Apetite Famélico`.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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