Conversa (des)afinada
O treinamento de Lucy assumiu novas feições. Segundo seus mentores, ela deveria passar por algumas sessões de análise, antes de continuar seu treinamento. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, Lucy se viu obrigada a passar algumas horas deitada num divã tendo de responder à angustiante pergunta: “No que está pensando?” O interlocutor dirigiu com habilidade essa terapia relâmpago, ao término da qual, Lucy percebeu que era importante, mais ainda, FUNDAMENTAL separar-se do seu companheiro. Ficou angustiada ao constatar que não tendo companheiro, chegara a uma conclusão absurda. Guardou para si essa revelação e declarou a quem quisesse ouvir que a terapia a transformara num fóssil novo. Um dos guias, fã declarado de Melanie Klein recomendou-lhe a leitura do “Mito de Sísifo” e a nova vida seguiu seu ritmo. O próximo desafio consistiu em colocar Lucy dentro de um simulador de última geração, de extrema sofisticação, uma vez que se tratava de um dispositivo virtual, cujo conteúdo era 75% nacional. – Lucy, concentre-se, em hipótese alguma não fique diluída; você está agora num reino encantado, como nunca antes na história da humanidade houve igual. Para deixar-lhe algumas referências, usaremos nomes fictícios nessa terra do Real, de maneira a podermos ter pontos de apoio nas situações que iremos examinar. Isso seria desnecessário, caso seu poder de abstração fosse maior. Quem sabe numa próxima etapa seja possível usar apenas símbolos. Está pronta? – Estou. – Bem, aqui está uma carta hipotética. – Como hipotética? – É que ela jamais foi escrita, mas se o fosse, teria esse aspecto. Começa com “Mon cher Guido” e a assinatura poderia ser da senhora Lagarde do FMI. – Fora FMI! Yankees, go home – bradou Lucy. – Calma, Lucy. Não se exalte. A passeata pacífica foi agendada para mais tarde. Consulte o Facebook. – É possível ter acesso ao texto? – Of course, como diria o ministro Aldo, amante reprimido de estrangeirismos. Na carta, Christine Lagarde comenta uma sugestão de revisão metodológica do cálculo da bruta dívida de um país, perdão, dívida bruta, o trocadilho consta da carta. O achado teórico consistiria em desconsiderar os títulos do Tesouro emitidos, porém na carteira do Banco Central por não terem ‘natureza fiscal’. Seriam meros papeis reais ou escriturais sem importância alguma. – E daí? – perguntou Lucy reprimindo um bocejo. – Daí, nada. Na cartinha hipotética há umas flechinhas, embebidas em curare, de pura ironia e para ser Franco (Gustavo), apesar de ser dirigida ao Guido, tem por alvo um senhor com nome de eletrodoméstico, muito famoso em terras teutônicas por causa de uma cançãozinha famosa: Ach du lieber Augustin. – Está no iutubi? – Decerto. Não fosse a alusão a um certo marechal De Gaulle, a carta além de hipotética seria perfeita. Mas De Gaulle, apesar de sua altura, passou por este planeta apenas como general. – Ahammm. – Voltando ao senhor eletrodoméstico – já não falamos mais da carta – ele se notabilizou por outro conceito: a velocidade dos dividendos, aquele saque sobre o futuro para costurar o tal superávit primário. – De fato, o conceito é interessante. Se a velocidade dos dividendos tender à velocidade da luz – o C de Einstein – a massa dos dividendos tenderia ao infinito, possibilitando construir uma rede de total segurança fiscal para qualquer país. Trazer de volta do futuro parece um achado mais para Spielberg do que para Einstein. – Bravo Lucy! Nesse momento, ocorreram algumas oscilações do campo eletromagnético do simulador e Lucy sentiu um estranho formigamento nos ganchos de titânio – aprovados pela Anvisa – que serviam para garantir a harmonia do seu corpo tão penosamente reconstituído. Naquele momento, numa tela imaginária apareceu projetada a frase: “Lula não voltou porque não saiu!” A frase piscou por algumas frações de segundo, o suficiente para ser lida, antes de desaparecer no vórtice ideológico, com o qual todo simulador virtual está equipado. Lucy deduziu, de imediato, que estava diante de uma ilustração do princípio da incerteza de Heisenberg. Mesmo sem ter conhecimentos suficientes, ela se recordava que em essência o bom Werner demonstrara ser impossível conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula. Generalizando, Lucy percebeu que no caso de um ser humano extraordinário, como modestamente aquele senhor aceitava ser qualificado, ele poderia estar permanentemente onde fosse possível invocar sua presença. Logo ter saído ou não ter saído passava a ser um conceito irrelevante. Mais ainda, Lucy percebeu que poderia associar a frase da gerente do regente ao gato de Schrödinger. Para não fatigar a mente dos leitores a discussão desse paradoxo fica a título de exercício para os (poucos) interessados. Mais uma vez houve uma flutuação de energia; obviamente, não se tratava de um apagão, eis que naquele ponto do espaço n-dimensional não haveria a menor possibilidade de tal ocorrência, somente possível em tempos que, segundo alguns historiadores, haviam deixado uma herança maldita. Lucy percebeu que fora abandonada. Enquanto aguardava a vinda do seu mentor, resolveu folhear um livro virtual de contabilidade criativa. Lendo diagonalmente, identificou a essência dessa novel disciplina. Para se chegar a um resultado desejado, a condição necessária e suficiente consistiria em desconsiderar os dados, que por mais reais que fossem, não deveriam ser levados em conta, para não invalidar o tal resultado desejado – com o perdão da repetição. Tudo uma questão de vontade política. Assim, para se chegar a um superávit primário do tamanho prometido, bastaria eliminar dos cálculos investimentos benditos. Como corolário: Se isso não fosse suficiente, poderiam ser adicionados variáveis ‘dummy’. Ou seja, eliminar o indesejável e somar os tais dividendos rápidos, por exemplo. Politicamente, essa abordagem possuía um subproduto. Para garantir uma avaliação de 100% de Ótimo e bom, seria necessário (e suficiente) eliminar os Regular, ruim e péssimo. Encantada com essa conclusão, Lucy acionou o assento ejetável – virtual naturalmente – e saiu do simulador.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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