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COLUNISTA
Alexandru Solomon
04/08/2013 - 10h30
O empréstimo
 
 

Mais um alarme falso. Mais um drible que o Velho aplicava na morte. Até parecia ter um prazer todo especial de, uma vez desenganado pelos médicos, derrotar a morte no hospital. Levado de urgência por uma ambulância, cuja sirene bem que poderia ter servido de fundo musical para um filme de terror, eis que, dois dias mais tarde, o seu motorista o trazia de volta. No apartamento, a recebê-lo, a governanta toda sorrisos e o pastor alemão, ensaiando um galope desenfreado, revirando todos os tapetes, sem, no entanto, derrubar nenhuma das caras bugigangas em cima dos móveis.

À guisa de comentário, o deboche.

– Parece que a minha senha para o Além não foi chamada. Eu não ia furar a fila, não é mesmo? Mas me garantiram que o processo de validação está em andamento.

Dizer que tinha uma saúde de ferro seria faltar com a verdade. Pelo contrário. Tinha sim uma capacidade incrível de resistência. Diabético, enfartado e hipertenso, sua fragilidade titânica servia-lhe de escudo. Aliado fiel, seu bom humor o livrava de stress, ao mesmo tempo que lhe permitia manter conversas cativantes. Como dizia o seu amigo Ari, ele sempre conseguia ser sarcáustico. Bem sucedido, costumava dizer ter acertado pelo menos duas vezes: ao entrar no torvelinho dos negócios e, sobretudo, ao ter escolhido inspiradamente o momento de bater em retirada.

Em compensação, o filho único, Júnior, espécie de alquimista às avessas, conseguira transformar em pó um negócio de ouro. Não fora uma proeza instantânea, pois esse processo arrastou-se ao longo de uma década. Após ter sido, durante longos anos, o braço direito do Velho, Júnior uma vez aboletado na presidência da holding familiar, tratou de mostrar seu valor. Era chegada a hora, enfim, de mostrar, a quem quisesse ver, o choque de modernidade destinado a fazer decolar a empresa.

O Velho iria receber uma verdadeira lição, pensava Júnior.

Não se pode dizer que a guinada nos negócios tenha impressionado o Velho. Com seu sorriso irônico, desafiava:

– Essa tal alavancagem vai ter o resultado de um supositório infantil num elefante.

– Pai, creio que seu erro foi ter sido muito conservador.

– Pode ser. Veja os resultados. A conta bancária, os imóveis. Tudo isso na sua opinião tem cara de prejuízos acumulados?

– Não é razoável ficar limitando as atividades das empresas em setores nos quais não há mais desafios.

– Como quiser. Lembre-se de que de uma criança muda não sairá um grande cantor.

O Velho transferira o comando e as ações das empresas para Júnior. “É melhor dar um presente com a mão ainda quente” e, em seguida, afastou-se definitivamente dos negócios e enfurnou-se em novas atividades. Para espanto geral, prestou vestibular e, alguns anos mais tarde, as fileiras dos economistas contavam com um novo integrante. Lia com sofreguidão para compensar aquilo que chamava os seus “anos vegetais”. Leitor de Jules Verne, na infância, decidido a realizar as viagens dos seus heróis, seguiu os passos de Michel Strogoff, de Phileas Fogg e de outros tantos. A pilha crescente de remédios era o seu memento mori. Ao mesmo tempo a pilha de projetos não realizados só não decrescia, porque cada realização afastava a linha do horizonte dos seus sonhos.

Enquanto isso, Júnior estava conseguindo uma pequena fortuna, tendo como ponto de partida uma grande. Surgiram as inesquecíveis pajelanças econômicas do final do século como resposta a novas e antigas turbulências e a situação foi se agravando. Obcecado por determinada matriz teórica, segundo a qual as indústrias do pai eram apenas vacas leiteiras sem futuro, atirou-se em direção à miragem ponto com. Houve uma sucessão de aventuras com resultados variáveis, nem sempre favoráveis, diga-se de passagem, mas, no calor da refrega, a palavra de ordem era não perder o bonde da história. Cruel ironia falar em bonde, tendo como pano de fundo o furacão globalizante. A poeira custou a se assentar, mas quando isso finalmente aconteceu, não havia como esconder: a Nova Economia não era tão diferente da antiga. Às grandes valorizações da época de euforia, seguiram-se quedas vertiginosas. Algumas empresas constituídas a toque de caixa representavam, decorridos apenas alguns meses, nada além de ralos pelos quais um capital traidor ia ao encontro de novos bolsos. Apostando no longo prazo, Júnior passou a se dedicar a um triste passatempo: empinar papagaios em banco. Não era possível que tudo fosse dar errado, pensava.

Era.

Falar com o Velho passou a ser a única esperança; teve, porém, de ouvir no mais puro anti-economês ser aquilo um problema para cuja solução o Velho não iria comprometer as suas reservas.

– Enquanto eu tiver algo, você também terá. Isso não quer dizer que irei colocar dinheiro nesse saco sem fundo. Eu pertenço à velha guarda conservadora e ultrapassada. Um sorriso zombeteiro acompanhou a negativa. – Embarcou nos derivativos e sobraram ativos à deriva, meu filho. Sabe ao menos quem disse isso?

– O tio Ari ... Concordo, ele é engraçado.

Com as linhas de crédito esgotadas, faltava renovar, ou rolar no linguajar humilhado de Júnior, justamente o empréstimo mais pesado. Ele sentia medo. Mesmo que houvesse uma renovação, o banco iria testar-lhe a saúde financeira. Poderiam exigir o pagamento de uma parte do empréstimo como condição para a “rolagem”, ou pior ainda, o pagamento integral, para depois estudar se iriam partir para uma nova operação. Até poderiam emprestar o mesmo valor, mas iriam querer ver a cor desse dinheiro transitando pelo caixa da agência. Mas pagar qualquer valor expressivo significaria “estourar”. Não havia de onde tirar um coelho da cartola, por falta de cartola e, sobretudo, de coelho.

A noite que antecedeu a reunião com o banco foi de pouco sono para o capitão da jangada na qual o Titanic familiar havia se transformado. Aquele dinheiro era a tábua de salvação e sua falta poderia se transformar no golpe de misericórdia. Foi justamente a noite da internação do Velho. Entre xícaras de café e caminhadas na sala do seu apartamento, uma idéia se apoderou de Júnior. De início foi apenas um... “e se?” rejeitado com indignação, para se transformar numa certeza que já não conseguia afugentar. Teve de admitir, envergonhado, ser a morte do Velho a última chance. Não havia alternativa e, afinal de contas, era a ordem natural das coisas. O pai, já viúvo, tinha vivido o suficiente. Repetiu várias vezes em voz alta, tentando convencer-se de que desejava apenas a diminuição da duração de uma internação ruinosa e do sofrimento de todos.

“Melhor se ele morrer. Melhor para todos.”

“Ele tem de morrer. Seria a salvação.”

Sentia-se mal pensando assim, mas procurava justificar:

“É o único jeito. A herança resolveria tudo.”

Adiou a reunião do banco, feliz por ter encontrado na doença um pretexto para se livrar do compromisso por mais uma semana. Não seria justo dizer que a volta do Velho tenha sido uma decepção total; fora, porém, uma surpresa sem ser das melhores.

Na véspera, Júnior ficara grudado no telefone, falando ora com o médico particular do pai, ora com o hospital, a ponto de a sua orelha se parecer com a de Van Gogh. Todos falando que era uma questão de horas. Pois sim. Já estava acalentando a idéia da solução, e essa resistência do Velho pondo tudo a perder.

No dia fatídico da renovação do empréstimo, o gerente, ultimamente bem ácido, informou que o comitê de crédito reavaliara a situação da firma e resolvera renovar o empréstimo por um ano sem nenhuma garantia além do aval pessoal do Júnior, com a taxa de juros de clientes especiais. Brincadeira! O aval de alguém que não passava de um proprietário de dívidas. Possivelmente, na óptica do banco, era melhor dar essa chance do que nada receber. Poderia ser um cálculo astuto ou, talvez, uma tentativa de se apoderar das firmas na qualidade de único credor. Suas empresas objeto de cobiça? Nem sonhando.

Para deixá-lo inteiramente estupefato, foi-lhe dito que “para reforçar a parceria”, à medida que fossem vencendo os empréstimos nos demais bancos, eles poderiam ser renovados ali mesmo. Não era um tubo de oxigênio que lhe era oferecido era uma UTI montada. O Velho e ele tinham em comum UTIs de tipos diferentes.

Júnior não conseguia acreditar no que ouvia. A solução surgira sem passar pela... Estava envergonhadíssimo. O seu raciocínio frio derrubado por uma postura inesperada de um gerente, variável essa com a qual não imaginava, nem remotamente, poder contar.

Foi o início, se não da volta por cima, ao menos de uma recuperação promissora.

Alguns meses depois, a senha do Velho foi chamada.

Ao receber os pêsames, entre emocionado e inconformado, recebeu também a explicação do mistério. Não havia como duvidar da veracidade da informação, pois ela vinha diretamente de um diretor do banco salvador. O Velho, sempre ele, em troca do mais absoluto sigilo, deixara aplicado um valor que garantira a operação resgate.

O sorriso conhecido despontou impiedosamente de algum lugar do Além. “Ao menos saberá cuidar do cachorro?”, parecia dizer.


* Do livro Mãos Outonais, Ed. Totalidade.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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