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COLUNISTA
Alexandru Solomon
16/06/2013 - 07h12
Rigoletto
 
 

Desde criança, Artur adorava ópera. Uma das suas maiores paixões era Rigoletto e, como não poderia deixar de ser, a famosa ária do duque de Mantua: La donna è mobile. A tragédia do bufão, ao ouvir, no famoso terceiro ato, a voz daquele cuja morte tramara entoando a ária, para descobrir, logo em seguida, que seu sinistro projeto vitimara a própria filha, Gilda, exercia sobre Artur um irresistível fascínio. Dificilmente, passava um dia sem que ele cantasse a brilhante ária:

La donna è mobile, qual piuma al vento muta d´accento e di pensiero. Sempre un amabile leggiadro vis, o in pianto o in riso è mensognero. “A mulher é inconstante como uma pluma ao sabor do vento, e seu rosto bonito, rindo ou chorando, é sempre mentiroso”. O fato de discordar com esses dizeres, não inibia o cantor.

Tipo estranho esse Artur.

Vinha de uma família abastada, no entanto, alguns desacertos do pai, na Bolsa de Mercadorias e Futuros, reduziram a pó uma fortuna considerável. Seguiu-se o desagradável ingresso de Artur no contingente do proletariado urbano da Cidade Maravilhosa. Residia num “conjugado” — uma garçonnière — cujo aluguel era compatível com o modesto salário de empregado numa agência de turismo. De noite, tentava concluir um curso de Direito. Uma tentativa louvável, se bem que exageradamente sofrida, a julgar pela sua excessiva duração. Algumas matérias rebeldes teimavam em adiar a posse do almejado “canudo” de bacharel. Insensíveis, os mestres teimavam em não se separar desse aluno, já na flor dos trinta anos.

Da fortuna passada, sobravam poucos resquícios. Apenas alguns objetos, além da total inadaptação à nova e cruel realidade. Dentre os troféus, testemunhas de tempos melhores, restava uma armadura medieval, salva milagrosamente por Artur das garras do liquidante da estrondosa falência. O sumiço do conjunto de elmo, couraça e malha, foi conseguido, na calada da noite, antes do seu arrolamento no conjunto de bens destinados a irem a leilão. Por sorte, ou negligência — que, ocasionalmente, andam de mãos dadas — o ato não trouxe nenhuma conseqüência desagradável. A mãe suspirou: “A que ponto chegamos, Nequinho!”. O senhor Manoel limitou-se a ajudar o filho, sem tecer maiores comentários. No fundo, a pirraça filial era uma espécie de desforra.

Qual a função de tal elefante branco num lar de exíguas dimensões?

Artur encontrou a resposta, ao não saber resistir à tentação de cantar envergando a armadura. Colocava-a com cuidado e, assim trajado, soltava a voz. Para os vizinhos, essa paixão tinha um brutal inconveniente. Imunes à melomania, toda vez que o Pavarotti improvisado colocava-se frente à janela aberta e, a plenos pulmões, esmerava-se em divulgar esse trecho da obra de Verdi. Choviam protestos, na forma de gritos e frases impublicáveis, bem como de telefonemas cujo teor não engrandecia os interlocutores. Nada abalava o cantor. Por pouco, a cidade inteira não tomava contato com as notas encantadas. Se isso não acontecia, não era por falta de empenho do tenor. Raramente, e talvez fosse essa uma falha a ser possivelmente corrigida num futuro próximo, ocorria alguma variação no repertório. Havia uma explicação. Premido pelo que poderia ser rotulado de “insuficiência de caixa”, Artur adquirira algumas — poucas, muito poucas — gravações da parte instrumental, que lhe serviam de fundo musical, suporte e motivação. Na verdade, saber se a monotonia do repertório ou a falta de afinação constituía a principal fonte de rejeição, por parte dos vizinhos, nunca chegou a preocupar o artista.

A aflição maior devia-se à precariedade de suas finanças e à falta de perspectivas de curto prazo. Por ter tido uma infância e uma adolescência abastada, a penúria incomodava e muito. Conviver com a decadência não era seu forte. Não poder homenagear o Deus-consumo, como fora acostumado, revoltava Artur.

Diz a sabedoria popular que, para espantar os males, é necessário cantar. A receita fora seguida para desespero da vizinhança. A empregada que fazia a faxina duas vezes por semana, às terças-feiras e aos sábados, recebera ordem expressa de jamais interromper os momentos musicais, de sorte que, uma vez fechada a porta da divisória interna do pequeno apartamento, nenhum pretexto poderia justificar-lhe a irrupção no espaço reservado ao artista. Aqueles poucos metros, que mal chegavam a ser quadrados, de tão acanhados, recebiam o pomposo nome de dormitório. O acesso de dona Renata era condicionado ao silêncio eloqüente do vocalista. Nada mais justo: onde já se viu um serviçal encarregado da limpeza invadir o palco e perturbar o deslumbrante terceiro ato de Rigoletto?

Malgrado os denodados esforços vocais, não ocorreu o esperado afugentamento dos males, e Artur, resignado, admitiu que não passava de lorota o famoso: “Quem canta os males espanta”.

A grandes apertos correspondem grandes decisões. Isso explica, em parte ao menos, a resolução tomada, após algumas honrosas hesitações. Foi uma saída temerária, adotada a partir de uma decisão por maioria simples dos neurônios, após um debate acerbo. Prevaleceu a ousada tese do furto, uma solução extremada, porém definitiva. Iria tentar esvaziar o cofre da agência. Sabia que haveria de encontrar dólares, a serem trocados por reais de origem inconfessável, ou até os tais reais não declaráveis. O fato de o dono ser amigo do pai contribuiu para aumentar as hesitações, mas, num sobressalto de cupidez, o vacilo foi finalmente escoimado daquela mente essencialmente materialista. Fiel ao princípio de que nada vale a pena quando se é pego, Artur empenhou-se a fundo e arquitetou um plano aparentemente infalível. Recapitulou os passos, examinou os possíveis imprevistos, para finalmente concluir que não sobrara nenhum ponto sem nó.

Em primeiro lugar, observou com atenção redobrada a rotina do ambiente de trabalho, concentrando o foco sobre o objetivo principal. O cofre não possuía segredo. Apenas uma única chave, que raramente saía das mãos de Luciano, o tesoureiro, o abria. Estava mais para lata de conservas do que para caixa-forte. Ainda bem. Bastaria arrumar uma cópia da chave. Como todo projeto bem estruturado estoura seu prazo de realização, Artur resolveu ter paciência, descartando de imediato a inimiga da perfeição. Não havia como fixar uma data. Restava-lhe ficar precatado. No entanto, a partir da tomada de decisão, passou a carregar constantemente massa para modelar no bolso. Um belo dia, aconteceu: Luciano deixou a chave sobre a escrivaninha, fato raro, que veio reforçar a convicção de Artur de sempre haver uma luzinha de esperança no final de qualquer túnel. Como nos melhores filmes de ação, Artur colocou sua mão de aspirante a criminoso perfeito - munida da massa, é claro - sobre a chave, e suando em bicas, conseguiu reproduzir em tempo recorde o gesto repetido inúmeras vezes em ambiente doméstico. O treino mostrou seus frutos. Apesar da mistura de emoção e medo, sempre ausentes quando dos ensaios, mas a atazaná-lo quando se tratou de agir para valer, a operação foi coroada de sucesso. Uma olhada vulturina o tranqüilizou. O gesto passara despercebido. Quem iria se importar com sua tomada de apoio sobre a mesa de um colega, após um tropeção perfeitamente simulado? No máximo um ou outro poderia torcer pela desgraça maior. Um tombo, pelo que possui de grotesco, provoca sempre hilaridade em seres comuns, quando a vítima não for nova ou velha demais.

Vencida essa primeira etapa, cuja conclusão ganhou contornos definitivos com a encomenda de uma chave, quando de passagem por Porto Alegre, acompanhando um grupo de turistas – ninguém iria associar a abertura de um cofre com a confecção de uma chave a centenas de quilômetros de distância – havia mais dois obstáculos: A ocasião, que só faz o ladrão quando se digna a apresentar-se, e o álibi. Para tanto, a operação deveria ocorrer num momento em que o escritório estivesse vazio e seria imprescindível que Artur pudesse demonstrar, ou tornar plausível ter estado em outro lugar naquele preciso instante.

Eis que um belo dia, o Doutor Paolo, o patrão de Artur, amanheceu órfão. Enfarte fulminante, consignou o médico da família. Para prestar as últimas homenagens à defunta, o expediente da tarde daquela terça-feira foi suspenso.

Era preciso agir. O enterro fora marcado para as 16 horas. Não bastaria viver o momento presente, como lera em tantos livros de auto-ajuda, era preciso valorizar cada minuto. Superando seu mais otimista prognóstico, Artur chegou em casa e pegou o “kit emergência” cuidadosamente guardado no fundo do armário. Por sorte, dona Renata, se atrasara, de maneira que pôde dar seqüência ao plano sem ser incomodado. Na verdade, a presença dela teria colocado tudo a perder. Artur colocou a armadura em frente à janela, afastou a cortina surrada e, exultante, fixou, dentro da armadura, o pequeno gravador no qual estavam imortalizados seus trinados. A gravação fora programada para tocar dez vezes a famosa ária, com intervalo de três minutos, devendo terminar quarenta e cinco minutos mais tarde. Programou o início para as 15 horas. Abaixou a viseira do elmo e sorriu satisfeito. Depois do último solo, estava gravada uma outra mensagem, aos gritos.

— Renata, dê um pulo até o supermercado e compre duas garrafas de vodka. Duas garrafas de vodka, duas. Entendeu? O dinheiro está em cima da máquina de lavar roupa. Preciso para já. — Tudo faria sentido. Por diversas vezes, dera ordens parecidas à dona Renata, justamente para que ela não as estranhasse no dia D. Ela jamais ousaria entrar enquanto ele cantava. Poderia sustentar, tranqüilamente, uma versão inatacável. Estivera cantando das três até quase às quatro da tarde. (Não me lembro bem, senhor delegado, acho que foi isso, não reparei; depois saí e fui ao enterro.). A vizinhança inteira iria validar seu álibi.

Saiu às pressas, torcendo desesperadamente para não cruzar com a faxineira. Um encontro com ela teria posto tudo a pique. Mais uma vez a sorte lhe sorriu. Audaces fortuna juvat — a fortuna ajuda os audaciosos — costumava repetir seu mestre de Direito Romano.

Uma vez no carro, procurou um lugar mais tranqüilo, extraiu da mochila a barba e o bigode postiço, colocou uma peruca com uma longa cabeleira encimada por um boné, inseriu debaixo da camisa uma pequena almofada. Tudo calculado. Até aí nenhuma falha. Jogou o paletó no banco traseiro. Deixou o carro num estacionamento. Passava das três da tarde. Naquele mesmo instante, La dona è móbile já devia irritar um bom número de vizinhos, aos quais reservara o papel de aliados ad hoc.

O velho edifício da avenida Rio Branco não dispunha de um sistema de segurança de primeira grandeza. Um zelador sonolento perguntou entre dois bocejos. “O senhor vai...?” — deixando a pergunta flutuar incompleta — e ficou satisfeito ao ouvir: “Na seguradora” — Muito justo, havia três corretoras de seguros no edifício. O zelador deu-se por satisfeito, mostrando o quanto era avesso à bisbilhotagem.

No elevador lotado, seu Geraldo registrava mecanicamente os pedidos — vida dura essa de piloto de elevador. Artur disfarçou a voz ao indicar um andar acima do seu e desceu a pé para, finalmente, chegar à agência. Colocou as luvas cirúrgicas e abriu a porta. Rapidamente, foi ao cofre. Só faltava a chave não servir. Serviu. Não se deteve para contar. Contar com qual finalidade? Transferiu para a mochila os maços de notas, fechou o cofre e saiu. Como último requinte, já que não havia ninguém no corredor, usou a imitação de canivete suíço para simular um arrombamento. Essa minúcia só poderia contribuir para desnortear os investigadores. Guardou as luvas, subiu um lance de escada e, pilotado por seu Geraldo, alcançou o piso térreo.

Pouco depois das 16 horas, Artur, o verdadeiro, livre do disfarce, com o paletó escuro, de acordo com o estado de alma do patrão, murmurava as palavras de praxe. A seguir, foi abraçar e consolar seu pai que chorava a morte de tia Loretta, que o vira nascer e que para ele — não cansava de repetir — fora uma segunda mãe. “Para mim ela foi uma segunda mãe também” — pensou Artur, divertido com a idéia sacrílega de que esse parentesco o tornava, de certo modo, irmão do próprio pai, e até do Doutor Paolo. Demorou-se mais um pouco, para que pudesse ser visto pelo maior número de presentes. Ventava muito naquela tarde. Depois de vários dias sem chuva, o vento levantava nuvens de poeira. Artur achou que tinha ficado o suficiente, deu um abraço no seu pai e bateu em retirada.

De volta ao apartamento arrumado — sinal de que a faxineira estivera lá — resistiu à tentação de contar o dinheiro e tratou de escondê-lo atrás do fundo falso do armário. Estranhou a falta das garrafas de vodka. Procurou-as, sem sucesso, e decidiu repreender dona Renata quando da próxima vinda.

Saiu na rua, com os itens do disfarce num saco de plástico, esperou a passagem do caminhão de lixo e atirou tudo no triturador, de acordo com o planejado.

No dia seguinte, ao chegar, fingiu espanto e indignação ao ver o vai-vem causado pela descoberta da escamoteação. “Como pode?”, “É o fim da picada!” foram seus comentários atrabiliários. A seguir, tratou de trocar idéias com os colegas, consternados com o acontecido e com a perspectiva da dispensa de alguns. O Doutor Paolo permanecia prostrado na sua sala. Através da divisória de vidro era possível notar sua desolação. Para alguns a razão do abatimento ficava mais clara. Os empregados, a par das operações na zona cinzenta da legalidade, sabiam que seria impossível acusar a falta do dinheiro sem procedência clara. Não haveria indenização possível. Por volta do meio-dia, a Polícia entrou em cena. A pequena sala de reuniões foi usada para que, um a um, todos os empregados pudessem fornecer a maior quantidade possível de informações, enquanto um perito, tentava levantar impressões digitais e tirava fotos. “A-haaa, a fechadura parece ter sido forçada” — sentenciou o técnico, enquanto fotografava. Luciano permaneceu quase uma hora na salinha. Saiu de lá mal contendo o choro. “A chave nunca saiu das minhas mãos” — não se cansava de repetir, sentado desconsolado em frente à tela apagada do seu microcomputador. Todos foram dar solidários tapinhas nas costas do infeliz. Artur, de cenho franzido, juntou-se aos demais.

“Todos têm um bom álibi, doutor Paolo – explicava o delegado, um sujeito alto, grisalho, óculos de armação dourada e terno de corte ordinário – Afinal, estiveram juntos, almoçaram juntos e, juntos, foram ao velório. A menos que estivessem mancomunados. O senhor acredita que possam ter combinado isso?”. “Impossível — repetia o dono — nenhum deles seria capaz disso; eu os conheço.”

Chegada sua vez, Artur explicou calmamente que não possuía a chave do cofre — absteve-se de comentar que, naquele momento, sua cópia já devia estar num monte de lixo na periferia da cidade — e que fora até sua casa apanhar um paletó escuro. “Sim, por volta das 15 horas. Ah, por aí! Não olhara o relógio. O que fizera lá? Bem, ele tinha um hábito engraçado: cantava La donna è móbile. O que era isso? Ora, uma ária de ópera. O doutor delegado gostaria de ouvir? Não? Desculpe, doutor delegado. Sim, a empregada estava em casa e poderia testemunhar, se bem que ela jamais o perturbava enquanto cantava, mas com certeza, doutor delegado, ela ouviu e os vizinhos também. He he, eles detestam. Obrigado. Estarei à disposição. Claro, quando o senhor quiser. Sim, ela vem trabalhar às terças e sábados. Com certeza, se quiserem, ela estará lá nesse sábado. Preferem assim? Tudo bem para mim.”

A vida retomou seu curso. Artur sabia que não era o momento de dar qualquer sinal exterior de riqueza. Dentro de um mês ou dois, talvez. Era preciso manter a circunspeção.

Por contenção de custos, Luciano e Rogério foram dispensados. Ao ver as lágrimas de Luciano: “Tenho mulher e filhos, o que será de nós?”, Artur sentiu pena. De pronto colocou-se à disposição para ajudar o ex-colega. Ganhou um abraço, sentiu um leve aperto de coração e, mentalmente, resumiu tudo com a frase ouvida de um amigo: “A fila continua andando”.

Na sexta-feira, foi informado de que no dia seguinte, “pode ser por volta das 15 horas?”, iria receber a visita do delegado. “Mas que diabo de delegado esforçado”, pensou. Não era hora de exigir a exibição do mandado judicial. Quanto mais rápido, melhor. Apesar de sentir-se seguro, não pôde evitar uma certa preocupação. Abandonara até os seus recitais.

O delegado, acompanhado de um outro policial, provavelmente um subordinado, chegou um pouco antes da hora marcada. Em consideração ao fim de semana, abandonara o terno, viera de camisa e calça jeans. Os policiais examinaram, aparentemente sem grande interesse o ambiente. Como não podia deixar de ser, a armadura chamou-lhes a atenção. Artur tratou de explicar que se tratava de uma peça de coleção e que de vez em quando...

— O senhor entende, trata-se apenas de uma visita. Não temos, nem procuramos nos munir de um mandato de busca, de sorte que agradecemos sua hospitalidade. Não tem obrigação nenhuma de falar...

— Obrigado, mas pouco tenho a lhes contar. Dona Renata, a faxineira, se atrasou. Assim que ela chegar, peço para ela servir um cafezinho. Eu sou meio ruim nisso. — Artur esforçava-se para falar com naturalidade. Alguns instantes depois, dona Renata fez sua aparição. Ao ver os estranhos, fez menção de bater em retirada, mas Artur a reteve. “São policiais amigos”. Se a intenção do esclarecimento era tranqüilizar dona Renata, o efeito conseguido foi o oposto.

— Senhora, gostaríamos de fazer algumas perguntas.

— S-s-s-im.

— Trabalha aqui faz tempo?

— Pode responder, não se assuste – interveio Artur, recebendo em troca, pela primeira vez, um olhar inamistoso.

— Desde quando um policial assusta?  – perguntou secamente o delegado.

— Trabalho faz dois anos, mais ou menos, isto é comecei em fevereiro. Isso mesmo. Fevereiro que vem, completarei três anos.

— Esteve aqui terça passada?

— Sim.

— Seu patrão disse que ele costuma trancar essa porta e fica cantando. Como é mesmo o nome? — perguntou o delegado.

— La donna è móbile — informou Artur, com ar divertido.

— Isso mesmo. Obrigado, meu jovem. Então — voltando-se para a empregada — ele estava aqui na terça-feira passada, cantando?

— Ele gosta muito de cantar e eu de ouvir. — e acrescentou — mas na terça que passou, ele não estava em casa. Artur sentiu um suor gelado nas costas.

— Pode repetir isso, senhora?

— Isso mesmo. Quando cheguei a porta do quarto estava trancada. Quando é assim, eu não entro. De repente ouvi um barulhão e mais nada. Resolvi entrar. Não havia ninguém. Por causa do vento, a cortina deve ter enganchado na armadura que fica na janela e a derrubou. Levantei essa tralha e recoloquei de pé. Fiz meu serviço e fui embora.

O delegado caminhou em direção à armadura.

— Bonita mesmo. – e bateu de leve no elmo. Como que obedecendo a uma ordem ouviu-se: La donna è mobile, qual piuma al vento muta d´accento e di pensiero. Sempre un amabile leggiadro viso in pianto o in riso è mensognero.

* Do livro ´Bucareste`


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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