A atmosfera modorrenta do escritório de Daniel Lima refletia a ausência de uma semana do titular. O feriado na quarta e os vários anos sem qualquer tipo de férias convenceram a direção do jornal ser interessante patrocinar uma “enforcada”. Redator responsável por mais de dez anos, Daniel, o “Bombardeiro”, precisava urgentemente recarregar as baterias, ao menos por uma semana, longe da calma aparente daquela pequena cidade. Pois era dessa calma que era necessário extrair notícias capazes de manter o interesse dos leitores. A falta de eventos, a ausência de escândalos, a normalidade conspiravam contra a tiragem. O jornal precisava da verve de Daniel. Um redator estressado significa uma coluna desprovida de interesse. Para recuperar o craque, nada como um pequeno descanso. Naturalmente, antes de sair, teve de deixar algum material, a fim de evitar a observação: “o responsável pela coluna encontra-se em férias”, aceitável num grande jornal, porém totalmente inviável aqui. De volta, Daniel estava procurando no meio da ordem aparente, obra da secretária, restabelecer, em cima de sua mesa, a desordem com que estava habituado a conviver. Em primeiro lugar espalhou os recortes dos principais jornais, preparados para serem deglutidos. Achou o bloco de anotações, curiosamente colocado bem à sua frente e não, como de hábito, embaixo da pilha de revistas e, ainda sem muita vontade, começou desenhar um quadrado. Traçou uma diagonal e sem perder de vista o computador ligado com a chuva impiedosa de e-mails, a ponto de reduzir a pó os efeitos do descanso, começou enegrecer uma das metades do quadrado. Lá fora, um sol tímido insinuava alguns raios hesitantes através da folhagem da figueira poupada, milagrosamente, quando da construção do prédio. Pediu um café a dona Laura, sem interromper sua tarefa. Ao lado do quadrado já desenhado, desenhou mais dois. Decididamente, estava virando um Mondrian do preto e branco. A porta se abriu, dando passagem ao patrão. O dono do jornal, um cinqüentão simpático, pertencia à segunda geração dos proprietários do “Novos tempos”. Empresário bem sucedido, mantinha o jornal apenas para honrar a memória do seu tio, fundador e mola-mestra da publicação. Herdeiro único, empenhara-se para manter vivo esse patrimônio familiar, sobretudo por uma questão de prestígio. Em hipótese alguma cogitaria em fechar. Nos últimos anos o problema a ser resolvido era apenas de quanto seria o prejuízo e como minimizá-lo. De qualquer maneira, uma simples operação de “engenharia fiscal” que consistia em incluir o “Novos tempos” na holding familiar, permitia o aproveitamento do pequeno e inevitável prejuízo, tornando menos cruel a mordida do Leão nos polpudos resultados dos demais empreendimentos. – Olá, Daniel! – Bom dia, senhor Aderbal, reprimindo, como sempre, um sorriso ao pronunciar o nome. – Espero que tenha dado para espairecer. Sentou-se despreocupadamente na poltrona à frente da mesa, riscou um fósforo de tamanho avantajado, reacendeu o seu detestável charuto e, através da nuvem azulada, contemplou o interlocutor. Este, aparentemente absorto em seu desenho, acompanhava com atenção a expressão do patrão. O ar tranqüilo lhe parecia bem enganador. Normalmente, a visita diária ocorria à tarde, para tomar conhecimento da “cara” do jornal do dia seguinte. Essa chegada matinal era esquisita. Tirar férias também o era. Quem sabe, ele só queria ser gentil, isso acontecia também. Era raro, não era impossível. – Pois é, você me deixou meio sem jeito. Pausa. O que será que ele queria? – Poderia ser um pouco mais claro? – Não sabe mesmo? – Nem desconfio. – Então, leia isto. Foi você que escreveu. Aderbal procurou no bolso, retirou um recorte e o colocou em cima da mesa. Apesar de o recorte estar à frente do patrão, Daniel leu sem dificuldade: “Belizário, o escolhido do alcaide”. Era a sua matéria da véspera. Ora, a construtora Belizário irá reformar a entrada de serviço da Prefeitura ããã... e irá construir uma ala nova, respeitando o estilo da construção... Não há novidade. Apenas escrevi um pouco a respeito da história do prédio que é de 1895, reproduzindo o projeto... – Não é isso, não pode ser isso... ... e disse que iríamos voltar ao assunto com mais detalhes. Não vejo problema algum. Houve uma licitação, o custo da Belizário foi o mais baixo, veja, até escrevi que ele foi 10% mais barato que o segundo colocado, tudo dentro da maior lisura... – E o que quer dizer com “voltará com mais detalhes”? – Um chamariz, iria falar sobre... – Não vai falar sobre coisa alguma! – interrompeu Aderbal, com uma rudeza fora do comum. Quer que percamos o nosso mais importante anunciante. Ele esteve aqui comigo. Acaba de sair furioso, dizendo que saberá como retaliar se necessário. Não sei o que é, não quero saber, tenho ódio de quem sabe. Uma coisa eu sei. Ele me disse que detesta gracinhas. Pense antes de escrever! Levantou-se e saiu, deixando atrás de si o rastro da fumaça do charuto. Daniel continuou pensativo. De que maneira um assunto sem graça poderia ter causado tal comoção? Ficou contemplando a dança das sombras que a folhagem, animada por uma leve brisa, projetava sobre o carpete. A contemplação não lhe foi de grande ajuda. O toque estridente do telefone o arrancou das suas reflexões. – O Doutor Belizário na 36 – anunciou Laura – Está furioso, prepare-se. – Alô, é Daniel. – Amigo, mal nos conhecemos, Belizário falava pausadamente, mas tenho a impressão de que podemos manter um relacionamento cordial. Pelo menos por enquanto. Depende de você. – Naturalmente, seria uma grande honra. – Pode me dizer com franqueza. Acha que você tem bala para me intimidar? Pensa que pode? – Doutor Belizário, deve haver algum engano... – Escute com atenção. Não tolero insinuações, venham elas de onde vierem. Capito? O que diabo queria dizer Belizário? Qual teria sido o motivo? Era simplesmente inacreditável que aquelas linhas pudessem ter causado tal transtorno. – O senhor está se referindo à obra da Prefeitura? – Não, estou me referindo à muralha da China. – Assim fica difícil conversar. – Eu não tenho tempo para comentar aleivosias. – Mas... eu não estou entendendo... – A jogada clássica! Não entende, coitadinho. Está claro aqui... Fornecer detalhes... inevitável destruição de uma gravação... ora acha que sou algum aprendiz. Quanto quer? Quanto? Diga logo! O Aderbal quer medir forças e usa o escriba? É isso? Pois veremos... – Doutor Belizário, há um mal-entendido. A gravação... – Eu a quero. Pago e acabou. Diga qual o seu preço, chantagista ordinário. Nem mais uma palavra. Um gesto meu e será esmagado. – Mas... O outro desligara. Alguns minutos mais tarde, Aderbal irrompia transtornado no escritório. – Que gravação será destruída? – Nos fundos do prédio há um friso de mármore com uma gravação em latim, nem me lembro o que diz. Ao fazerem a reforma, o friso será retirado e a gravação irá se perder a não ser que seja reconstituída. No novo projeto não haverá mais o friso. Portanto, a gravação se perderá. – Vejam só, Aderbal recuperara seu ar jovial, mal reprimindo uma gargalhada. Belizário acaba de desligar depois de me contar o drama. Abriu o jogo para mim. Ele mantém há alguns meses um caso com a nossa primeira dama. Quando viu “Belizário escolhido pelo alcaide” teve um primeiro ataque de nervos, pensando que houvesse alguma alusão a esse romance. Quando o jornal mencionou que pretendia voltar com detalhes, imagino que passou a suar frio, pois talvez não tenha ocorrido a você que a esposa dele detém 99% das ações da firma. Com o escândalo, adeus casamento, BMW e outras mordomias. A alusão à gravação o levou a pensar que alguma conversa mais picante houvesse sido grampeada, como andam fazendo por aí e que a destruição da gravação seria o assunto dos tais “detalhes”. Ele está apavorado. Pediu que eu o afastasse por um tempo da redação. Na verdade, pediu sua cabeça, ou que eu o silenciasse da forma que eu julgasse melhor, sem olhar para o custo dessa operação “abafa”. – Bem, só que agora acabou a confusão. É só contar-lhe. – Como é ingênuo! Meu Deus! Às vezes chego a ficar perplexo com tanta inocência. Vamos deixar o Belizário pensar que temos uma arma. Sempre poderá servir, no mínimo para aumentar a quantidade de anúncios. – E eu? Ele vai querer acabar comigo. – Que nada. Quantos meses de férias lhe devo? – Quatro meses, menos uma semana. Essa, que acabo de tirar, aproveitando o feriado. – Pois bem, que tal uma bela viagem de dois meses à Europa? Com isso, você abrirá mão do restante daquela bagatela de um mês e pouco que a empresa lhe deve. Férias, hotel, tudo pago. – E a minha esposa? – Eu não disse que você é um inocente? Não sei quem o apelidou de “Bombardeiro”. Não passa de um planador. Claro que será um pacote completo para o casal. Fica acertado que enviará uma ou outra matéria interessante de onde estiver. Assim, não irá enferrujar de todo. – Agradeço, senhor Aderbal, é muita generosidade sua. – Criança, é o Belizário quem irá pagar. O nosso querido cliente. Ou será que não sabia que o cliente tem sempre razão? Do livro “Apetite Famélico”, melhor livro em português, Poesia Prosa e arti figurativi – Il Convivio – Itália.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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