L. era o que se convenciona chamar um sortudo. Não um sortudo qualquer, vez por outra bafejado pela sorte e sim, um sortudo definitivo. Um daqueles indivíduos a quem essa deusa caprichosa se entrega de vez. Dizem que, no caso dos azarados, o sanduíche cai sempre com o presunto para baixo. Não era o caso. Em se tratando de L. o sanduíche jamais caía. Na escola, sem ser particularmente estudioso, sempre conseguira se sobressair. Também pudera. Nas provas caíam exatamente os poucos tópicos estudados. Com o tempo, L. percebeu essa agradável conspiração do destino e passou a confiar nesse aliado tão constante. Uma vez na faculdade — é claro que dera um show de cruzinhas no vestibular- chegou a ser considerado um dos mais competentes estudantes do qual se teve notícia. Junte-se a esse fato o detalhe de a natureza ter sido generosa, para entender seus sucessos junto às colegas. Isso sem contar uma ou outra conquista, recrutada no meio de outros contingentes, igualmente vulneráveis ao charme de L.. Entre amigos já se tornara proverbial o brilho da boa estrela de L.. Talvez a chave de tudo tenha residido no fato de L. nunca ter abusado da generosidade do destino. Até que numa roda de póquer jamais fizera feio, mas nunca lhe ocorreu acertar números de megassena, loto ou outras divertidas maneiras de empobrecer, a pretexto de querer dar um salto para a frente. Profissional de sucesso, L. foi flechado por Eros. O encontro, ocorreu por mera casualidade na casa de um tio dela, grande amigo de L.. Ser tio, já está demonstrado, não significa ser bem mais velho. Na verdade a diferença não passava de cinco anos, se tanto. Ela estava concluindo a faculdade de... Neste mundo injusto, onde tanto se fala na lei da oferta e da procura, ela era procuradíssima e para desespero de uma legião de fãs nada oferecia além de uma risada cristalina, um sorriso ambíguo e uma desculpa qualquer para descartar namorados insistentes demais. Ao menos foi o que L. pôde descobrir. Após o primeiro encontro, houve outros, com progressos lentos, sem ao menos serem notáveis. É claro que no século XXI o romantismo, apesar de acuado, ainda defende bravamente privilégios de outras épocas. Sejamos românticos, pois, pensou L.. Apesar de o roteiro ser diferente das suas usuais blitzkrieg, as dificuldades poderiam ter desencorajado qualquer um, menos L.. Em suma, tratava-se de um desafio para seu coração apaixonado. E nada acostumado com uma recusa. Isso pôs termo a uma carreira de Casanova. L. passou a concentrar todos os esforços numa frente única. L. estava amando. L. oferecia flores. L. passava noites em claro, sonhando. Pouco a pouco, Madalena (ela tinha nome), se não descartou de todo a legião de admiradores, deixou clara sua vulnerabilidade ao assédio. Casaram-se. Mais uma vez, L. lançou um agradecimento mudo aos ventos que sempre sopravam a seu favor. Ela concluiu o curso e, meses a fio, continuaram em plena lua de mel, mais apaixonados do que nunca. Ao completar um ano de casados, L. resolveu organizar uma festa-surpresa, mobilizando uma penca de amigos que festejaram o evento até altas horas da madrugada. Não faltou bolo, um DJ e seus decibéis agressivos, muito menos a emoção do momento. Ao final da festa, Madalena ganhou de presente um anel com um pequeno brilhante. Pequeno, pois apesar de sortudo, apaixonado e bem-sucedido, L. não era ainda milionário. Na mesma noite, L. ganhou de presente sensações de cuja existência nem desconfiara até então. Madalena adorou o anel. Por não ter dimensões exageradas, ela passou a usá-lo diariamente. Usava-o ao sair de carro, com o cuidado de virar a pedra para dentro. Usava-o no emprego, nos fins de semana em companhia de L.. Evidentemente, nem teria sentido perguntar se o usava quando iam a algum evento. Enfim, o anel parecia soldado àquela mão graciosa. Madalena adorava o anel. Nada mais normal que Madalena estivesse com ele quando, emocionada, encontrou Pedro, velho amigo de infância. Pedro. O primeiro namorado. As mulheres que nunca tiveram um primeiro namorado, pulando diretamente para o segundo ou terceiro são consideravelmente mais imunes a tentações, mas Pedro fora o primeiro. Uma agitação incomum apossou-se de ambos. Talvez por ter sido esse reencontro muito agitado, ao chegar em casa, Madalena notou, consternada, a falta da jóia. Apavorada ligou para Pedro, Pedro procurou cuidadosamente no carro, até voltou na mesma tarde, sem nenhuma esperança para o motel. Desgraçadamente, Madalena não tinha a sorte de L.. Apavorada e arrependida, Madalena teve de procurar uma solução. O que fazer? A falta seria notada logo. Como explicar? O que poderia dizer? Nenhuma mentira convincente lhe ocorreu. Entrou em pânico. Torrentes de lágrimas embeberam, na tarde seguinte, o ombro generoso de Pedro. Enfim, a grandes males, tratamento de choque. Decidido, ou teria sido mais correto dizer “persuadido” a proteger Madalena, Pedro encontrou a solução na vitrine de uma joalharia. Com cartão de crédito tudo é possível, garante a propaganda, mesmo se precisar parcelar em dez vezes. Após certificarem-se que o anel era absolutamente idêntico, Pedro se fez de desentendido, bufou, bufou um bocado e após uma série de promessas, pagou. A última prestação coincidiu com o último encontro deles. Pura coincidência, diga-se de passagem. Seria maldade fazer insinuações sem provas, menosprezando os sentimentos de Madalena. No fundo, no fundo, o episódio servira para provar-lhe que gostava mesmo de L.. Nunca mais, jurou para si mesma, iria ser infiel. Aquele Pedro. Como fora possível? Nada tinha de sedutor. Droga! L. notou que, após um breve período de arrefecimento, a paixão de Madalena voltou a se fazer presente. Sem ter a mais vaga ideia do que se passara, L. atribuiu à sua sorte esse maré amorosa. Alguns dias depois, o casal estava passeando, despreocupadamente, de mãos dadas, por uma avenida dessa maravilhosa Sampa de todos os assaltos. A história não teria a menor graça não fosse o aparecimento de um revólver na continuação de um braço trêmulo de emoção e crack. O convite veio sem cerimônia alguma. - A grana, já! O pivete dava mostra de objetividade. Nada de conversa fútil, comentários sobre o tempo, a situação política, a proximidade das eleições. Ele queria era por a mão na bufunfa. Por razões diferentes os três protagonistas da cena estavam apavorados. Um quarto personagem se perfilava ao longe. Para desapontamento daqueles que, como L. possam ter imaginado tratar-se de um guarda, tudo indicava ser apenas um sócio oculto do trombadinha. Teria a sorte se ausentado por um instante? - Vamos logo. Grana, cartão de crédito, celular. Rápido. Foi quando L. interveio. - Olha, pegue o anel da minha mulher, vale uma nota. Pegue e deixe-nos em paz. - Falou, coroa. Passe o anel. - Calma menino, tou tirando. - Vamos logo. Um minuto depois, nada fazia supor que houvera um assalto. A rua deserta estava cheia de gente. Onde será que esse povo se escondera? Caminharam rapidamente sem falar até o carro. Há quem numa situação dessas fala, gesticula, xinga. Não era o caso deles. Duas lágrimas correram pelo rosto de Madalena. Desta vez o anel se fora definitivamente. Já em casa L. rompeu o silêncio. - Olha, tivemos sorte. Minha sorte de sempre. Madalena estava soluçando. - Querida, você não está entendendo. - Não mesmo. - Quando digo que tenho sorte, é por essas coisas. Em primeiro lugar tenho você e em segundo lugar, a pedra do anel era falsa. - Como? - Naquela época estava atolado em dívidas. Ia justamente, por esses dias, inventar algum pretexto para ficar com o anel e mandar colocar uma pedra verdadeira. O garotão não fez um negócio tão bom quanto imaginou. E enquanto Madalena, ainda se refazia do choque, L. divisou na estante um livro de Maupassant, apanhou-o, mas na última hora desistiu de ler uma história bem parecida, interrompida na véspera e preferiu curtir sua inacreditável dose de sorte.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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