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COLUNISTA
Alexandru Solomon
01/04/2013 - 17h05
Dúvida
 
 

Tudo poderia ser dito a respeito de L., mas bobo ele não era. No entanto, padecia de um mal estranho. L. era um indeciso de carteirinha com as anuidades rigorosamente em dia. Isso vinha de longe. No começo, forças superiores encarregaram-se de forçar opções diante das quais as dúvidas o deixariam se consumir de forma inglória. Por exemplo, a escolha do seio materno com o qual o aleitamento iria ter início, esteve fora do seu poder de decisão. Por falta de mando, naquela oportunidade, as dúvidas esquivaram-se. A responsabilidade pela opção esquerda ou direita tão cara a políticos, não o atormentou, naquelas circunstâncias. Mal sabia que seria vítima dessa sina a persegui-lo pelo resto da vida. Aos poucos, as possibilidades crescentes de exercer o livre-arbítrio transformaram-se em instrumentos de tortura. As incertezas conseguiam paralisá-lo.
O tempo o viu continuar prisioneiro dessa peculiaridade da qual não encontrava escapatória. A origem dos titubeios encontrava-se justamente no seu notável poder de análise. Na ânsia de acertar nas decisões, perdia-se num infindável labirinto de suposições lógicas e, quase sempre, conflitantes. Em geral, tivera a ventura de se ver livre do doloroso suplício – e existe suplício indolor? – que a hesitação poderia lhe impor, graças à intervenção – no momento em que atingia o limite do sofrimento suportável – do acaso, providencial analgésico de última hora.
Tudo se passava como se fosse obrigado a percorrer um corredor, no fim do qual duas portas o aguardassem. Mais tarde, concluiu que seu universo era regido por leis binárias. Era “isso” ou “aquilo”. Ponto. Optar por uma alternativa significava abandonar a outra, sem possibilidade de voltar atrás. Pior, sem saber aonde a outra escolha o teria levado.
Por sorte, na maioria das vezes, uma das portas emperrava oportunamente, e a solução caía-lhe no colo, por simples exclusão. L. convivia perfeitamente com seu fado. Nunca ter pela frente mais de duas alternativas era motivo de tranqüilidade. Dos males o menor. Enfrentar escolhas múltiplas o teria levado à loucura.
Afinal, sempre enfrentamos questões pontiagudas a começar com o “ser ou não ser”, passando pelos torturantes testes “certo errado” e terminando com “o cafezinho com açúcar ou adoçante”. Os espíritos voltados para a chicana logo se insurgirão contra o último exemplo, citando uma aparente “terceira via” que consistiria em se tomar café puro. Antes que ostentem um sorriso triunfante, deveriam dedicar alguns instantes a uma simples reflexão e logo descobririam que a pergunta “açúcar ou adoçante” surge depois de uma seqüência simples do tipo: “chá ou café” e seu natural remate: “puro ou doce”. Uma vez resolvido esse impasse, o implacável cético estaria diante da constatação da inexistência da terceira via. Se esse exercício trivial alicerça ou não o maniqueísmo, L. não tinha a mais pálida ideia. Possivelmente, em consideração a esse tipo de perfil, falou-se por um bom tempo em fabricar qualquer tipo de carro, desde que fosse preto. Depois, veio o marketing, mas essa é uma outra história.
Indiferente ao drama interior do nosso herói, a ampulheta do Sr. Cronos, continuou emitindo seu tique-taque arenoso.
E eis que L., já adulto, recebeu uma flechada certeira de um Cupido mais perverso do que de hábito. Não se tratava daquelas irresistíveis paixões juvenis que fazem soluçar poetas esquálidos em hendecassílabos que os bons alunos decoram, para gáudio dos pais. Dessa vez era uma paixão profunda a queimar as entranhas, sem que antiácido algum pudesse trazer qualquer alívio. Totalmente enfeitiçado, L. não ousava aproximar-se daquela mulher maravilhosa, cuja proximidade o fazia acreditar que ela fora esculpida por Fídias, numa tentativa de melhorar a escultura da deusa Atenas. A imaginação de L. derrapava nas curvas estonteantes daquela mulher encantadora, qual vulgar calhambeque numa pista de altíssima velocidade. Por ser tímido, jamais ousara dirigir-lhe a palavra. Sofria em silêncio ao vê-la, e era só. A imagem do rosto perfeito o obcecava. A visão do andar desprovido de afetação provocava-lhe as mais incontroláveis extrassístoles, quando não as mais frenéticas taquicardias. Seus sonhos eram povoados por quedas imaginárias no desfiladeiro atordoante do maravilhoso decote. E isso era apenas um prelúdio. Acordava banhado em suor e poluções noturnas de adolescente espinhento.
Revoltava-o seu exagerado acanhamento, que o reduzia a um mutismo absoluto na presença dessa criatura sublime que mais lhe parecia um produto de sua fantasia. Numa época marcada pela informalidade, esse encolhimento poderia parecer um anacronismo, no entanto, uma força invencível reduzia L. a uma contemplação beata, marcada por inevitáveis hesitações. A queda do muro de Berlim não fora capaz de provocar o fim do seu encalistramento. Como livrar-se dessa insuportável timidez, se a alternativa era continuar no maravilhoso status quo?
Num momento de extrema ousadia, teve a petulância de perguntar a um amigo, que sabia ser comum, o nome da deusa. De tão emocionado, foi incapaz de memorizá-lo, deixando-o alojado, seguramente, em algum desvão de sua mente. Sofria calado, pior que um Werther moderno. Este ao menos soubera dirigir-se à sua amada. Diga-se, a bem da verdade, que em momento algum a ideia do suicídio lhe foi inspirada pelos incomparáveis olhos azuis, contraponto indescritível das melenas cor de trigo. Desde o primeiro instante, soubera ser aquela mulher a passarela que lhe permitiria aceder ao Paraíso. O drama era viver mergulhado no Hades de sua bisonhice. A tortura tornava-se mais pungente durante reuniões sociais, quando podia ver amigos seus desfrutando da companhia e do bom humor daquela encarnação do grau máximo do... da... enfim, de tudo aquilo. Encolhido, limitava-se a admirar. A falta de audácia era responsável por noites de insônia. As poucas horas de sono o deixavam mais esgotado ainda. Dormir pouco o deixava mais tempo acordado, concluiria o conselheiro Acácio. L. ganhava horas adicionais de angústia.
Numa bela tarde, L. dirigia apressadamente a caminho de uma reunião. Como sempre, a lembrança dos olhos de safira, ausente por alguns momentos, voltou, como falcão amestrado. Por falta das luvas adequadas, sentiu a dor lancinante com a qual ainda não soubera familiarizar-se.
Sem saber o que fazer, resolveu ligar o rádio do carro.
A princípio distraído, pulava de uma estação para outra até acompanhar, com interesse crescente, uma palestra proferida por uma especialista em História da Antiguidade. Depois de alguns minutos, descobriu o sentido das palavras “música para seus ouvidos”. Com rara competência, ao menos, assim lhe pareceu, a voz discorria, trazendo à tona as maravilhas de uma civilização da qual, se não somos reféns, ao menos, somos eternos devedores. L. estacionou o carro, não sem antes hesitar, para melhor poder prestar atenção. Indiferente ao trânsito intenso e aos ruídos vindos de fora, ouvia embevecido. Coisa estranha esse deslumbramento provocado por uma palestra versando sobre um assunto totalmente desprovido de magnetismo. Seria o tom de voz o responsável pelo encantamento? O menos que poderia dizer era que se sentia fascinado pela maneira inimitável de expor com graça e elegância conceitos e nomes que encontravam eco nas lembranças de um estudante aplicado. Aplicado, porém sem muito brilho, em História. Lembrava-se, entre divertido e levemente envergonhado, do constrangimento pelo qual passara, ao responder canhestramente, quando instado a mencionar o nome de três faraós: Ramsés I, Ramsés II e Ramsés III.
Seria aquele punhado de informações que o prendiam? Seria a voz? Onde estava a verdade e qual seu endereço?
De repente, L., realizou. Corria o risco de ser flechado, de uma forma diversa, se bem que não menos perturbadora. Quando surge essa percepção, já é tarde. Não há registros confiáveis de retorno de flechas uma vez lançadas nem de emprego de bumerangue por parte de Cupido. Não haveria de ser diferente justo naquele momento.
Estava perdidamente apaixonado por uma voz, ou hesitantemente seduzido? Eis a questão que não encontrou resposta. Terminada a conferência, o locutor anunciou que depois dos comerciais a palestrante responderia a duas perguntas dos ouvintes. Dirigindo uma breve prece à deusa dos congestionamentos telefônicos, L. teclou o número. Depois de algumas tentativas infrutíferas, a ligação se completou. Uma voz metálica o fez discar 1 para pessoa física, 7 para participar do programa, 9 para informar seus dados, e, concluída essa pequena maratona, informar que a partir daquele momento, tornara-se o feliz proprietário de uma bugiganga eletrônica de fabricação do patrocinador do programa, mas que, infelizmente, já não poderia mais transmitir sua pergunta. “Agradecemos sua atenção. Click” Terminado o comercial, a palestrante respondeu às duas perguntas e convidou os ouvintes ao coquetel de lançamento do seu livro, programado para o final da tarde do mesmo dia. Fato estranho. Nenhuma das palavras da conferencista, respondendo às perguntas conseguiu lhe assomar. Por sorte, graças ao milagre da tecnologia, o número que chamara estava gravado no seu celular. Apertou a tecla redial. Foram necessárias várias tentativas para finalmente poder declarar enfaticamente, dessa vez a uma atendente, que não estava interessado no novo mimo, uma camiseta autografada do conjunto que logo mais iria tocar, que o apetrecho eletrônico, que acabara de ganhar minutos antes, preenchia com sobras a quota de sorte do ano e, que sua ambição máxima era conseguir os dados relativos ao lançamento do livro.
Após receber a informação, teve direito a uma descarga elétrica: “A doutora está aqui. Quer falar com ela? Será fora do ar.” Ao fone, mesmo sob o efeito da poção mágica, L. portou-se bravamente. Após externar toda a admiração que a palestra havia suscitado, ouviu em troca um agradecimento gentil, que ecoou como um hino sacro. De posse do endereço, não titubeou! De maneira totalmente surpreendente, entre a hipótese de ir a tal reunião que invadiria a madrugada pondo a perder sua presença no lançamento e voar ao encontro da voz, não houve as costumeiras hesitações. Ligou para seu escritório. Pediu que fosse desmarcada a reunião por causa de um novo compromisso inesperado. “Mas doutor...”. “Invente qualquer coisa, dona Clarice, peça desculpas, seja criativa”. “Mas, doutor, essa reunião está marcada faz uma semana”. “E o imprevisto surgiu faz meia hora.”
Dirigiu como enfeitiçado.
À medida que se aproximava do local, L. sentia suas antigas convicções esboroarem-se. A sombra da dúvida o envolveu. Por acaso, não teria sido ele, durante longo tempo, vítima de um sortilégio superficial causado pela mulher encantadora, quando na verdade, o fascínio da voz e da erudição da nova musa estavam, merecidamente talvez, levando a melhor? A princípio rejeitou com raiva esse pensamento. Sentiu-se culpado de imperdoável profanação. Como fora possível padecer durante dias e mais dias, agora colocados em xeque pela autora de uma preleção, que, afinal de contas, dizia respeito a um assunto de interesse discutível? Ele não passaria de um cata-vento, sujeito a qualquer brisa sentimental? Uma voz aveludada, certo, mas não passava de uma voz, capaz, no entanto, de submeter seu universo sentimental a um inquestionável Big Bang. Por um segundo vislumbrou o fulgor indignado dos olhos sublimes, traídos de maneira tão vil. Sublimes, sim, obtemperava L., preso na armadilha da indecisão, mas que no fundo pertenciam a uma criatura frívola com certeza. Frívola? O pensamento o deixou submerso sob toneladas de acachapante opróbrio. De onde surgira essa ilação? Uma desculpa para isentá-lo de remorsos? Estaria prestes a se livrar do fardo inebriante de uma paixão não correspondida, mesmo porque nunca externada, em troca do enlevo causado por uma leitura erudita? Como reagir ante esse ignominioso vacilo? Ficou claro que, mais uma vez, estava marchando sob a bandeira do “talvez” a caminho de uma torturante encruzilhada. Angustiado, sentiu que jamais seu coquetel de dúvidas poderia assumir a forma de uma sólida certeza. Sem saber quantos pontos negativos na sua carteira de habilitação conseguira acumular ao longo de tão breve trajeto, estacionou o carro em frente ao local.
Estava consumada a traição.
Enfrentou, com uma bravura digna de nota, todas as etapas inerentes ao processo. Tudo para descobrir o rosto da “voz”. Seria encantadora, ou seria apenas uma voz? Uma matrona ou uma sílfide? Colocou-se na fila para adquirir o volume, informou seu nome – imediatamente registrado num marcador de páginas, colocado dentro do livro, a fim de poupar constrangimento à autora – e postou-se, disciplinadamente, na longa fila de autógrafos. Pensando bem, o comprimento da fila tinha uma inegável vantagem. Ainda distante, divisar o rosto desconhecido era, por enquanto, impossível, permitindo a manutenção do mistério.
Hora de refletir. Ponderar. Tentar tomar uma decisão. Alguns goles de um vinho branco adstringente – verdadeiro vinagre – servido por um garçom sem culpa alguma por incentivo à enofobia, não dirimiram a incerteza. Uma ou outra? Mas qual? Teria o traidor coragem suficiente para cortar esse nó quase górdio? Nada do seu passado permitia supô-lo. A fila continuava sua monótona progressão. Uma pequena pausa, o encontro da procura e da oferta, seguido pela colocação de algumas palavras – possivelmente algo banal como “com o abraço de...” – e novo avanço elementar. Já lhe fora possível notar os cabelos loiros. A ansiedade estava se apoderando do indeciso. Por um instante imaginou que o encontro se daria num claro-escuro, do qual o claro iria se retirar para todos os demais. Com estes mergulhados nas trevas, estaria a sós com ela e então, a realidade superaria a ficção? Ou, contrariando as expectativas, teria pela frente um rosto sem graça.
Ao se avizinhar, realizou que nem ao menos sabia o título de sua recente aquisição. Corrigiu rapidamente o deslize. Agora, havia apenas uma pessoa à sua frente. Um senhor espadaúdo, por sorte ou por azar. O senhor corpulento virou-se e rumou em direção à mesa do bufê.
Era chegado o momento de saborear o presente, já que o passado cessara de subjugá-lo e o futuro, seguramente, estaria lá em posição de sentido, prestes a materializar-se. Uma surpresa aguardava L., ao notar, não sem um indizível espanto, os irresistíveis olhos azuis da escritora, dominando o encantador sorriso, de cujo feitiço pensara, por alguns minutos, estar alforriado. A fusão das alternativas deixou espaço – como não poderia deixar de ser – a mais uma dúvida. Ficar ou sair correndo, a pretexto de ter ouvido disparar o alarme do carro. Ao rejeitar a fuga, L. soube que estava curado. Curado, sim, mas por quanto tempo?

* Crônica do livro ´Bucareste`, Ed. Letraviva.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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