Conversa (des)afinada
“Ensaio sobre a miopia.” Grande admiradora de João Ubaldo Ribeiro, fã inconteste dos Budas ditosos e de sua residência - ah, essa Fernanda Torres! - Lucy teve a oportunidade de ler um artigo no Estadão a respeito da Zelite (subst. fem. plural zelite). Através das palavras do mestre, pai de Zecamunista, descobriu o caráter perverso dessa entidade de difícil, se não impossível definição. Seja como for, suspirou o fóssil, ficar alienada a essa abominação, não reagir ante a vocação golpista dessa excrescência ainda não extirpada da cena política do país que a acolheu pareceu-lhe uma tarefa sobre-fóssil. Resolveu aprofundar suas pesquisas, uma vez que terminara as tarefas do dia. A exemplo de Gauss ainda criança, calculara em poucos minutos a soma dos números de 1 a 100, lição que o tutor Mate Mático lhe dera esperando, com isso, ter algumas horas de sossego. Eis que se não quando, uma rápida consulta ao Google a levou a um texto sobre Azelite. O que seria isso? Curiosa, imprimiu tudo e, as pernas sobre sua escrivaninha de trabalho, mergulhou na leitura. “Azelite, eis aí um flagelo moderno, combatido com denodo pelo nosso Guia Luminoso”. Ficou curiosa em saber quem seria esse guia luminoso, se a luz emitida era por fosforescência ou se era devida a algum outro tipo de fenômeno químico. Prosseguiu. “Azelite é um quadro clínico, estudado nos laboratórios presidenciais. Sabe-se que é causado por um vírus chamado ‘instrução’, mas pode ser o resultado de uma condição financeira OOS (out of shit), violentamente repudiada pelos tribunos do show-mico de nossa política”. A-hã, murmurou Lucy, trata-se de uma inflamação como gastrite, otite, conjuntivite - estou entendendo. “Nosso guia luminoso, a seguir designado pela sigla NGL, possui uma biografia resumida em dois trabalhos antológicos. O primeiro inclui os feitos, proezas, realizações, façanhas e outros gargarejos - tudo contido em 3 páginas, sendo uma de rosto e a outra reservada a anotações. No segundo, os biógrafos anexaram o histórico escolar e as leituras de NGL. Curiosamente, ambos os trabalhos têm o mesmo número de páginas. Está no prelo uma edição atualizada das gafes de NGL. São 100 páginas de puro prazer masoquista”. “A respeito da Azelite (do latim vulgar - as elites), o ódio que inspira, bem como o freqüente atropelo desse inimigo do povo, que é o plural, faz com que, por medida de economia, NGL designe seus portadores apenas por “eles”. “Eles” devem ser combatidos. ”Eles“ estão com raiva. “Eles” não querem que pobre ande de avião. “Eles”, enfim são a encarnação do mal. É preciso morder as canelas deles! Nesse combate, NGL ostenta todo o charme e o veneno requerido a um GL de verdade. A condição primordial é a amnésia, seguida de perto da ablepsia seletiva. NGL não sabe, não se lembra e não vê aquilo que possa turvar-lhe a sesta - básica naturalmente. Quando puxado pela manga, sempre que a referida manga entrar na sopa, como toda mosca desatenta, de imediato emite a SCP - senha da conservação no poder: Não sei, não vi, não me lembro, fui traído, punam-se os culpados. A última parte da SCP resultou repetidos strikes nas fileiras dos seguidores do NGL, exímio jogador de boliche. Os pinos derrubados - foram conservados carinhosamente, para uso futuro, quando o reinado da deusa Amnésia estiver garantido entre os guiados luminosamente, e, por que não, entre os demais habitantes do Absurdistão. Alguns poderiam achar excessivamente drástica a atitude de NGL em diagnosticar, em seres decentes, manifestações de Azelite. Como em breve rezarão os manuais escolares, preparados pelos companheiros de NGL, quem se opuser de alguma forma ao NGL, então já promovido a NQGL - nosso querido guia luminoso - será declarado portador de Azelite e, conseqüentemente, exposto à ira popular. Nunca antes, no reino do Absurdistão, houve uma penca de maravilhas comparável àquela com a qual NGL brindou o universo em geral e o Absurdistão, em particular. NGL teria feito bem mais, não fosse a epidemia de Azelite a causar problemas. Com a erradicação no estilo Castro (do francês casse trop) ainda em estudo, resta a NGL o belo monólogo televisivo com o qual encanta os não portadores de Azelite e, por que negar, alguns portadores de Azelite, atenuada pelo vibrião oportunista. Voltado para o futuro, NGL sabe que strikes (no boliche e nas fábricas) continuarão, mesmo se nos próximos orçamentos incluir entre receitas extraordinárias ganhos na mega, descobertas de minas de ouro, imensas jazidas de petróleo, eternização da CPMF, Bolsa-tribo etc. Nenhum desafio está além das forças de NGL, capaz de eleger postes para funções executivas.” Nada demais, pensou Lucy, Caligula fez do seu cavalo, Incitatus, senador, logo... “Como os portadores de Azelite podem não topar, encontrar a maneira de criar maiorias parlamentares pode se tornar uma tarefa espinhosa. Restará então a NGL exercer o poder desacompanhado. Qual é mesmo o nome dessa forma de governo?” Lucy quedou-se pensativa. “A menos que...” Das aulas de História, retivera um capítulo da História da França a respeito de 18 Brumário. Seria o caso de pensar num 13 Embromário? Até ordem em contrário, resolveu encarar com desconfiança a Zelite. Como identificar os portadores de Azelite? Inspirada por um autor originário de Stratford on Avon, concluiu: That is the question. - Então, Lucy, terminou a tarefa que lhe dei? - era o mestre Mate Mático. O que está lendo? - Estava... - Diga! - Estava chegando a uma conclusão. - Qual? - Se, graças a NGL houver mais postes, a vida dos cachorros melhorará! - Claro, Lucy. Como nunca antes na história deste país.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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