Conversa (des)afinada
Para quem não acompanha a série desses vibrantes relatos, Lucy é o tal fóssil descoberto na África. Agora, parece que temos ancestrais mais velhos. De qualquer maneira. Lucy foi reconstituída e ambientada às condições atuais pelo CIL (comitê de integração de Lucy). A comunidade científica fez das tripas coração - gesto que, num passado não tão distante, abriu caminho para os transplantes, deixando as tripas para especialidades culinárias, como dobradinha, tripa alla fiorentina, (pessoalmente prefiro alla romana) - para isolar Lucy da cena política. Entenderam os sábios que um contato estreito com a realidade poderia operar alterações na psique do fóssil. Valeu a tentativa, embora até os engraxates de Bucareste saibam que no mundo de hoje é mais fácil conservar tomates do que segredos. “Haddad está 16 pontos à frente de Serra”, dizia a manchete de um jornal esquecido sobre a mesa de trabalho de um pesquisador, Poli Tico - não é o propósito deste relato ocultar nomes. Imediatamente, Lucy formulou a pergunta que 100 entre 100 fósseis articulariam. - O que significa isso? Poli Tico, surgiu como o gênio das piadas - aquele que promete realizar três desejos e, geralmente, tapeia os idiotas incapazes de formular desejos coerentes: - Isso significa que um levantamento estatístico, considerando uma amostra escolhida de acordo com as melhores técnicas, indicou que nas eleições para prefeito de São Paulo, caso elas ocorressem no momento do levantamento, Haddad seria eleito. - E o Serra seria vice? - Não, Lucy. São alternativas que se excluem mutuamente. - Então, o prefeito seria Haddad? Aquele de quem tantos falam mal? - Exato, não Serra de quem outros tantos falam tão mal quanto. - Não entendi. Então, nenhum deles presta? - Você não pode entender essas coisas. Melhor ficar quieta e prosseguir seus estudos de Geometria não-euclidiana. Fique quieta! Procure o livro de Lobatchevski. - Decerto, mestre, a expressão A cane muto et aqua silente cave tibi. - desconfie de cachorro mudo e de águas silenciosas -, deveria levá-lo a reconsiderar sua ordem, retrucou o intimorato fóssil. - Hoc volo, sic iubeo, sit pro ratione voluntas - quero isso, assim mando, seja minha vontade o motivo. Poli Tico fora um brilhante estudante de Latim, orgulho do seminário. - Questa picolissima serenata... - Lucy está me envergonhando. Interrompe um debate com pretensões de seriedade com essa cançãozinha idiota dos anos 60. Teddy Reno não é candidato. Por que essa tentativa de mudar o rumo da conversa? - Perchè a me mi piace. De mais a mais, esse levantamento, pesquisa, sondagem, data vênia pode significar duas coisas. Em primeiro lugar a pesquisa pode estar errada e em segundo, de acordo com aqueles que desconfiam do método, em estando certa, demonstra que o eleitorado está equivocado. - Lucy! Não é uma posição objetiva. - E eu quero ser objetiva? Não fui contratada pela Nikon! Vamos esquecer as pesquisas, mestre. Como saber se captam corretamente a vontade dos eleitores? - Lucy sentou-se confortavelmente numa poltrona, colocou os pés em cima da mesa, tomando todos os cuidados para não revelar detalhes de sua intimidade, e se lançou num discurso. - Voltando à atitude do entrevistado, sem discutir se sua resposta foi de alguma maneira induzida, há casos clássicos que estudei às escondidas. O efeito Bradley. Sem entrar em detalhes, é a tendência do entrevistado em declarar um voto que não demonstre preconceito de cor, sexo etc. Tom Bradley concorria à prefeitura de Los Angeles em 1982. Era preto. Para não parecerem racistas vários entrevistados afirmaram que votariam nele, o que não aconteceu. Não temos ainda o caso da fuga do preconceito em relação a carecas com olheiras fundas. Ou temos? Efeito Shy Tory. Na Grã-Bretanha, em determinado momento “pegava mal” votar nos conservadores (Tories), razão pela qual, os ‘envergonhados’ declararam sua intenção de votar nos trabalhistas. O veredicto das urnas foi outro. Os institutos de pesquisa “quebraram a cara”, quando indicaram FHC eleito prefeito - deu Jânio, quando deixaram de apontar Luísa Erundina prefeita, quando desconsideraram a possibilidade de Le Pen entrar no segundo turno nas eleições presidenciais francesas, liquidando Jospin, prestigiado pelo então candidato Lula, que se fez presente no seu palanque. Não deixarei de citar o caso mais marcante, quando da vitória de Truman sobre Dawies, havia unanimidade dos institutos de pesquisa indicando este. Ficou famosa a foto de Truman no Day-after brandindo um exemplar do Chicago Tribune, anunciando a vitória do outro, uma bela “barriga jornalística”. Por fim, é importante considerar o efeito ‘late swing’, a reviravolta tardia, com mudança de última hora do voto, fenômeno que nenhum instituto de pesquisa poderia captar. Moral da história? Nada de salto alto, nada de já perdeu. Os números têm de ser interpretados sem que se crie uma exagerada dependência em relação a eles. E é bom evitar simplificações: Se, por exemplo, a regra de três prevalecesse sempre, uma dona de casa apressada, acostumada a fazer um bolo a uma determinada temperatura do forno, poderia estar tentada a dobrar a temperatura, para reduzir o tempo à metade. Reduzirá o bolo a cinzas. Poli Tico acendeu um charuto cubano, um imponente Partagas, presente do chefe de uma delegação cubana e mergulhou num abismo de reflexões. - Lucy, por quem está torcendo? - Simplesmente estou achando apressada a capitulação ante a falta de ética de vários integrantes do SEU time. - Vamos voltar às aulas de geometria? - Tudo bem. Pela minha idade não sou obrigada a votar!
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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