Conversa (des)afinada
Lucy, nossa famosa ancestral, confinada nas dependências do CIL - Centro de Integração da Lucy -, está começando a entender o que se passa na cena política brasileira. Na verdade, conhece o significado da palavra cena e da palavra política. Não conseguiu ainda juntar os conceitos. Para aprimorar seus conhecimentos, não perde uma das sessões do julgamento do tal mensalão. Por uns poucos instantes ao ouvir falar da “Ação Penal 470”, pensou estar assistindo o filme errado. Foi-lhe dito que era a mesma coisa. Para distrair-se e não sucumbir ao sono, usa um Playstation velho, adquirido pelo CIL. Ela não entendeu o alvoroço criado pela afirmação do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, quando afirmou que o voto do revisor Ricardo Lewandowski abre caminho para o triunfo da tese do Caixa-2. Ela só tinha entendido que a mulher de um certo deputado fora pagar uma conta de TV a cabo e voltou para casa mais rica do que tinha saído. Perguntou se o CIL teria alguma conta a pagar, e garantiu ser voluntária para ir efetuar o pagamento. Foi-lhe dito que mesmo indo, dificilmente, regressaria mais rica. Na mente algo linear de Lucy ir para pagar uma conta e conseguir um ganho de reflexão de umas 200 vezes, algo como 23dB, poderia ser o início de uma grande fortuna. Diante do silêncio que se seguiu à sua argumentação, abandonou o projeto. Lucy percebeu que era melhor continuar assistindo TV. De mais a mais suas tentativas de demonstrar o teorema de Fermat tomavam uma parcela importante do seu tempo ´discricionário`. Lucy estranhou quando um dos seus tutores, um integrante de uma tal de zelite reacionária tentou explicar que: ”Apesar de vivermos numa época em que a expressão ´decoro parlamentar` tornou-se um oximoro, quando nada mais deveria comover-nos, a admissão de uma ´culpa menor`, de um pecadilho que desde sempre foi cometido não deveria deixar-nos indiferentes”. Por conseguinte, a pressão arterial de Lucy - monitorada continuamente - não se alterou. Mesmo assim, fez algumas perguntas aos seus tutores. Quis saber o que era Caixa-2, e se era aquilo que imaginava, perguntou se adultério poderia ser chamado de leito-2, o que reduziria a pó diversas ações de divórcio. Diante das explicações confusas recebidas, voltou ao seu iPod e continuou ouvindo “Lucy in the Sky” with diamondas. Afinal, devia seu nome a essa homenagem ao ácido lisérgico. Ficou claro para ela que acompanhar um julgamento no excelso Pretório não era algo comparável com o ato de torcer por um time de futebol. Uma torcida barulhenta pode influenciar um bandeirinha, ou um juiz de futebol, mas isso não se dá com eminências togadas. Foi-lhe possível constatar que o ´óbvio ululante`, do qual ouvira falar, pode ser condição necessária, mas de forma alguma suficiente para condenar. Ingenuamente, perguntou se os supostos corruptores costumavam exigir recibos dos supostos corruptos, e os sorrisos desanimados dos seus tutores a levaram a concluir que recibos desse gênero não são emitidos. Experimentou a frustração de seu prejulgamento, por ter estado de posse de dados infinitamente menos abundantes do que aqueles contidos nas cinquenta quilopáginas do processo. Saber que determinado deputado se sente agora de alma lavada é apenas um detalhe. A alma é dele, raciocinou Lucy. Permaneceu uma indagação. Ter utilizado recursos “não contabilizados”, provenientes de Caixa-2, por acaso, seria uma espécie de traço meritório de comportamento? Há, no fim da linha, a previsão de uma medalha por bom comportamento? De repente fez-se uma luzinha. Lembrou-se das aulas de História do seu curso de adaptação, e murmurou; Honni soit qui mal y pense. Melhor não fazer juízos maus. Procurou um amigo empresário, enrolado numa autuação imotivada e sugeriu-lhe utilizar o argumento do Caixa-2 na sua próxima reunião com o Auditor da Receita, durante a fiscalização inconclusa após quase dez anos. Foi o fim de uma amizade que mal se iniciara. Um dos tutores levou Lucy perto de uma janela aberta, de modo que suas palavras não pudessem ser gravadas a partir dos microfones instalados no CIL, e olhando para fora, de costas para possíveis câmeras, sussurrou: “O processo não terminou, há ainda inúmeras páginas em branco, o clamor das ruas não serve para inocentar ou inculpar. Pelo menos, sabemos não teremos a repetição do caso da ´Escola de base`. Os juízes não se pautam nem devem se pautar pela opinião pública, e qualquer que seja a decisão final, haverá, fatalmente, um grupo de descontentes. Se este for composto por pessoas com vergonha na cara, azar”. Lucy não entendeu direito. Afinal, se com 70 anos e um dia, um ministro já não pode opinar, os milhões de anos de Lucy a condenavam a uma eterna incompreensão dessas sutilezas.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
|