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COLUNISTA
Alexandru Solomon
05/08/2012 - 11h09
Nostalgia
 
 

Pela janela, um raio de sol evitava uma persiana complacente e se insinuava em cima de um carpete acolhedor e gasto. O facho de luz deslocava-se com uma lentidão que exasperaria os mais apressados, mas condizente com aquele ambiente vetusto. Em cima da cômoda, discretamente contemplada com uma fina camada de poeira, havia diversos retratos em molduras com graus diversos de deterioração.

No maior deles, uma senhora sorridente, vestida de noiva, ostentava um sorriso amarelado pelo tempo, dirigido a um jovem de fraque, com imponentes costeletas, igualmente sorridente. Apenas alguns centímetros adiante, a mesma senhora, com o rosto sulcado por marcas impiedosamente deixadas pelos anos decorridos entre as duas fotos, segurava no colo duas crianças com calças estufadas por fraldas. Num outro retrato, o mesmo senhor já menos sorridente, menos cabeludo e menos esguio, ao lado de um jovem casal, acenava em direção ao infinito, ou talvez ao fotógrafo.

Um outro retrato, numa moldura outrora reluzente, encimava uma pilha de revistas que, por sua vez, flanqueavam um rádio-relógio, relíquia dos já afastados anos setenta. Neste, o fotógrafo havia conseguido captar a alegria de um casal que se aproximava da meia-idade, prestes a embarcar num avião da Panam.

Um cinzeiro de prata, impedido de exercer sua função original, por uma recente e tardia exigência médica, acumulava alguns papeizinhos, debaixo dos quais aglomeravam-se moedas, um isqueiro velho e cartelinhas de remédios.

Uma estante repleta de livros fazia frente a uma cama desarrumada e desocupada. No vão da estante, um computador impedia que um visitante hipotético pensasse, por um segundo que fosse, que o muro de Berlim ainda estivesse de pé.

O trinado do forno de microondas havia chamado o senhor alquebrado que, após tropeçar numa mala desfeita no chão, estava tomando seu café da manhã na cozinha do pequeno apartamento, lendo atentamente o jornal.

A televisão ligada inundava o ambiente com o ruído dos socos com os quais heróis de desenhos animados estavam se gratificando. A pancadaria era interrompida regularmente por mensagens publicitárias tão irritantes quanto os desenhos, apesar de ligeiramente mais silenciosas.

Ainda de chinelos, iniciou a leitura do jornal, como sempre, pelos classificados, deixando para o fim a passagem em revista das desgraças da véspera.

Olhando por cima dos óculos, percorreu com um olhar distraído a cozinha que, na sua relativa desordem, relembrava-lhe, como se ainda fosse preciso, sua condição de viúvo solitário.

Um novo dia estava começando. A única diferença era que seria o último no apartamento. Havia acatado a solicitação do filho e da nora e tinha aceito mudar-se para uma assim chamada casa de repouso, já que a palavra asilo, pela sua aspereza, estava sendo diplomaticamente evitada.

Na verdade, ele estava praticando a ilusória submissão de quem sabe estar dominando, apesar de ter conseguido este domínio através de uma contínua e bem-sucedida chantagem emocional.

Após a morte da esposa, havia se tornado progressivamente insuportável.

A cada telefonema do filho, perguntava se este queria se certificar se ainda estava vivo. Ao receber uma gravata de presente, perguntava invariavelmente se era uma indireta para se enforcar. Ao dar uma gravata ao filho, ressaltava imediatamente que o fazia por ter percebido que nenhuma das outras que dera, havia agradado. Num restaurante, se convidado, horrorizava-se diante das sugestões que lhe fazia a nora: ele jamais poderia comer aquilo com o colesterol no nível em que se encontrava. Ao convidar o filho e a nora, assumia um ar de culpa por sair com eles, já que ELA não mais estava entre os vivos.

Profissional competente, se aposentara havia mais de uma década, mas ainda assim, todas as manhãs repetia o velho ritual de sair engravatado com a pasta de executivo, só que, em vez de se dirigir ao escritório, vagava sem rumo pela cidade, para voltar à hora do almoço e tornar a sair em seguida, voltando para o jantar.

Essas andanças, pontuadas por pequenos assaltos, dos quais tinha sido vítima com freqüência crescente, deixavam claro que a rotina deveria mudar.

Mas como mudar? De que maneira um indivíduo, cujo passatempo predileto havia sido trabalhar, poderia alterar seus hábitos diários?

Os amigos tinham desaparecido. “O nosso contingente está sendo chamado” era o triste comentário. Aceitar a evidência da própria inutilidade feria os brios do trabalhador contumaz e, como por uma questão de orgulho, jamais aceitara bicos, estava mergulhando na depressão, da qual só raras leituras conseguiam tirá-lo.

Após várias conversas, havia finalmente consentido em “deixar de ser um peso morto” para os seus e, num último apelo sentimental, declarou aceitar ser sepultado em vida, já que isto traria sossego para os demais. Além disso, pela freqüência das visitas que ele receberia - não ia deixar de dizer isto - teria uma idéia de quantas vezes seria visitado, ao trocar esse túmulo provisório pelo definitivo, o que “aconteceria mais rapidamente do que supunham”.

E agora, estava tomando seu café com a miríade de comprimidos, cada qual neutralizando a ação deletéria do anterior, que por sua vez combatia alguma das manifestações da sua principal doença: a velhice.

O telefone tocou. Era apenas a confirmação da hora em que viriam buscá-lo.

O que levar consigo? Nem sabia como seria o novo lar, pois opusera-se veementemente a visitar com antecedência o local.

Enfim, teria tempo para ler aquele livro de Proust, as poesias de Guilherme de Almeida, e quem sabe Ulysses. Levaria algumas fotos, o computador, a roupa que já havia sido selecionada, e estaria um pouco mais próximo da sepultura.

Pela janela, o raio de sol, driblando a persiana, fazia-lhe companhia pela última vez no pequeno apartamento.

Crônica do livro “Almanaque Anacrônico”, Ed. Totalidade.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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