Conversa (des)afinada
No zoológico, os animais são geralmente decentes, exceto os macacos. Sente-se que o homem não está longe – sentenciou o pensador Cioran. Esse vínculo, no quesito ignomínia, ao qual fazia referência Cioran – ele não devia estar pensando em Darwin – se faz notar na nossa vida pública, onde a decência parece viver, a todo instante, seus últimos momentos, resistindo em um ou outro indivíduo ou comunidade, que juntos, formam um arquipélago precário, prestes a ser submergido pelo mar de lama. Não é preciso ser um Narciso às avessas, prestes a cuspir na sua imagem para chegar a essa conclusão. Nunca antes neste país, a divisa “ordem e progresso” esteve tão próxima de se tornar uma curiosidade desprovida de significado. Possivelmente, o núcleo resistente seja mais amplo. Em todo caso, isso não fez muita diferença. O “sucessão” (o grande sucesso, antes que impliquem com o artigo “o”) de indivíduos medíocres, protagonizando uma série interminável de desmandos, e que por fim acabam absolvidos por aparentes ataques de imperdoável amnésia coletiva – traduzida pela recondução a funções que jamais deveriam ter ocupado –, quando não por algumas filigranas “juridículas” não parece ter fim, ou será que agora será diferente? “Vedoinadas”, “Demostenadas”, “Valdomiradas”, “Severinadas”, “Arrudadas” e outras “Mensaladas indigestas” sucedem-se ad nauseam. Uma verdadeira cachoeira de detritos. O comentário oficial é que tudo será devidamente investigado e os culpados punidos, mas na prática, nada disso ocorre de maneira perceptível. Nossa especialidade parece ser um neo-dostoievskiano crime sem castigo. Não existe culpado, logo não há punição, portanto, vamos à praia aos domingos, ou às sextas, ou mesmo às quintas, já que a semana de menos de 30 horas impera no mundo encantado de Brasília. Pois se alguma culpa for cabalmente demonstrada, por acaso acontece algo? Joga-se fora o sofá sobre o qual o adultério foi cometido e la nave vá. Ou impugnam-se as provas. Pronto. Todos ficam felizes quando surge a diarista que tudo varre... debaixo do tapete. Aparentemente, não existe pecado do lado de baixo do Equador; trata-se apenas de maquinações de uma elite – na qual, nem sempre, se perfilam os “justos”–, inconformada com “isso que está, esteve e, infelizmente, parece que estará aí”. Uma imprensa vendida, composta por “bandoleiros de plantão” – na (in)feliz expressão de uma sumidade, estaria fazendo o possível para infernizar a vida de abnegados eleitos pelo povo, que só não fazem mais (ainda bem!) por ter que reagir às aleivosias de uma oposição insubmissa. Será? Salvo os portadores de antolhos ideológicos ou de consciências alugadas, alguém aceita essa patranha? E, por acaso, a oposição de ontem ou a de hoje merece que se lhe entoem hinos de louvor? “Mas o que ocorre agora sempre aconteceu, caixa dois é algo mais antigo do que andar pra frente, o valerioduto já foi inaugurado na gestão passada, logo faz parte da herança maldita”, o problema é o financiamento das campanhas etc. retrucam, à guisa de defesa, os “aloprados” flagrados, as falsas vestais, os pudibundos de araque. E arrematam: “Vocês” fizeram igual. Tudo isso na esperança de ver malfeitos escabrosos se diluírem no lodo de estripulias praticadas pelos da banda de lá. Melhor do que discorrer a respeito da desproporção entre “deslizes” presentes e passados, é preferível dizer que nem todos somos os tais “vocês”. A indignação é apartidária, assim como a deterioração dos padrões éticos não é privilégio exclusivo do PT. Trata-se de uma pandemia mundial, mas sua manifestação, ultimamente, extrapola todos os limites, cá, em Pindorama. Trocar o rótulo transformando crimes em ‘malfeitos’ não é a solução. Será que estabelecemos um padrão mundial contra a corrupção como disse a Secretária de Estado Hillary Clinton, ou aprendemos a conviver com um padrão de indecência que bate recordes? O misto de incompetência que se manifesta nos órgãos comprometidos pela política da entrega ao saque, dentro dos padrões de outorga em regime de porteira fechada a bem da governabilidade, associado à ausência de escrúpulos, que somente a certeza da impunidade pode justificar, não deixa alternativa, a não ser a indignação de “tanto ver triunfar as nulidades”. Pior ainda, chega-se a descrer das virtudes da democracia representativa, atitude que pode levar a uma verdadeira tragédia. A essa altura, parece não importar haver provas acachapantes contra esse ou aquele homem público. Ele negará até a morte e, caso não haja saída, contará com a morosidade de um Judiciário lento – aparentemente, por ser a justiça cega. A prescrição acaba sendo a repugnante solução. A subseqüente farta distribuição de narizes de palhaço – mesmo sem terem sido necessariamente superfaturados – remove, na prática, qualquer esperança de sair do atoleiro. Se os ventos favoráveis da economia mundial conseguiram por um tempo jogar poeira nos olhos do distinto público, nada justifica assistir placidamente ao contínuo processo de degradação que, longe de se atenuar, parece oferecer no relaxogozismo ao qual somos intimados a participar, a única saída desse imenso lodaçal. Quando algumas marolinhas interrompem o ciclo de bonança festejado como coroamento de uma sábia maneira de governar, a saída é simples: jogar a culpa nos outros. Nós estaremos sempre certos, o problema (inferno) são os outros. Sartre já dizia isso. Todos são inocentes até prova em contrário, mas nem todos são ingênuos a ponto de presenciar, inertes, o naufrágio dos valores morais. Indignar-se, mesmo se nocivo à saúde das coronárias é um passo necessário. Talvez não saibamos votar, mas aprenderemos, antes que seja tarde. Antes que se implante o “habeas mídia”. Em qualquer país minimamente civilizado, nenhum movimento poderá dispensar um aparato jornalístico, já dizia Lênin. Então, ao invés de quebrar o termômetro que acusa a febre, antes de rotular de reacionários aos que se insurgem contra a podridão, a incompetência, a ineficácia e a omissão, é de todo desejável que a logorréia oficial e das siglas que compõem uma volúvel “base aliada” seja substituída por uma postura responsável, mesmo que isso implique em menos aplausos de platéias domesticadas. Mesmo que alguns mitos se desmanchem, mesmo que algumas biografias fiquem tisnadas para sempre. “A verdade está em marcha, nada a deterá”. Não é preciso ser Zola, para acreditar nisso. Estamos diante de uma oportunidade histórica de passar o país a limpo, para usar um bordão banal cujo significado não deveria nos escapar.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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