...a partir de um ponto as costas mudam de razão social
Outro dia, Lucy invadiu aos gritos a sede do CIL - Comitê para a integração de Lucy. Chorava convulsivamente. Depois de intermináveis minutos, recuperou a calma, mas um ligeiro tremor das mãos indicava que algo a atormentava profundamente. À inevitável pergunta: O que houve, Lucy?, manifestou o pânico que a invadira ao saber que um dirigente da FIFA pretendia chutar, ou encontrar quem chutasse os traseiros dos brasileiros para que a novela Copa do Mundo de Futebol chegasse a um final feliz. - Todos serão chutados? Eu nem recebi o visto permanente. Vão dar pontapé no Cesare Battisti também? Explicaram que se tratava de uma figura de linguagem e que de qualquer maneira seria muito difícil chutar 190 milhões de traseiros. O argumento aritmético deixou Lucy um pouco mais tranqüila, mas as dúvidas estatísticas não a abandonaram. De fato, havia uma probabilidade de ela receber um desnecessário e sobretudo imerecido chute. De que adiantaria? Ela não fazia parte do Comitê organizador, não estava envolvida com obras públicas, não organizava concorrências públicas... E persistia uma dúvida: Tirando a rudeza da frase, de que adiantariam chutes - ou no idioma do sr. Jerôme des coups de pied au cul? Sem contar com a dificuldade de acertar precisamente o lugar onde as costas mudam de razão social. Bastaria um pequeno erro de pontaria, e o pontapé poderia acertar a coluna lombar, causando danos irreparáveis. “Eu não sou popozuda, não posso correr esse risco” - exclamou Lucy, novamente às lágrimas. Pobre fóssil tendo seus direitos humanos ameaçados. A lei Maria da Penha a protegeria? A complexidade da situação deixava-a presa a horríveis pesadelos. Revoltava-a saber que a ameaça não pairava somente sobre ela e que seus amigos poderiam ser submetidos à medida infame. Haveria alguma lógica nisso tudo? - Qual é a verdade? - sussurrou Lucy. - A verdade é demasiadamente nua para excitar os homens - veio a resposta de Jean Cocteau (grande amigo de Zidane) de passagem pelo CIL. Nesse momento a televisão passou a mostrar a imagem do Ministro dos Esportes, altivo, digno como a estátua do discóbolo de Miron, ou de alguma cópia, que num histórico pronunciamento estava rechaçando com energia os dizeres do francesinho atrevido, assim como no passado tentara fazê-lo com os neologismos. O CIL veio abaixo. A fala contagiante de Sua Excelência foi o estopim da explosão que se seguiu. - Abaixo a FIFA! Abaixo a França! Abaixo Villegaignon! Vamos reviver a Guerra da Lagosta! A cada coup de pied au cul, saberemos responder à altura! Olho por olho, glúteo por glúteo! Aux armes citoyens - oops, essa fala não é nossa! Alguns mais eufóricos sugeriram o imediato bombardeio da sede da FIFA, ou na falta disso a castração de Jerome Valcke. Sem entender as razões dessa euforia, mas encantada com a visão das bandeiras agitadas, Lucy concluiu que não era importante saber qual a situação das obras da Copa. Participar do agito era muito mais interessante. Tinha ouvido recentemente a frase cheia de sabedoria de um pensador cujo nome lhe fugia naquele momento de comoção cívica: No fim dá-se um jeito! Mesmo assim, um pensamento aristotélico a invadiu: A dúvida é o início da sabedoria. Por acaso aquele energúmeno teria razão ao manifestar de maneira pouco educada suas preocupações? - Como estão as obras? Decididamente, o apego à verdade prevaleceu e fez Lucy bater na tecla inicial. - Está tudo sob controle. Há alguns atrasos, mas reagiremos na hora certa. Haverá alguma correria, um pouco de dinheiro gasto a mais, uma ou outra comissão e um ou outro superfaturamento. E daí? Pecúnia non olet. O dinheiro não tem cheiro. Muito menos o que for para perto dos Alpes - suíços, naturalmente. - Acredito por que é absurdo - conformou-se Lucy encantada com a elegância da frase de Tertuliano, que tão oportunamente lhe veio à mente. Pouco depois, nova explosão de entusiasmo, motivada pela declaração do grande diplomata Marco Aurélio Garcia, chamando de vagabundo ao potencial chutador de traseiros inocentes. A gritaria foi incrível! “Nosso herói!”, escandiam os presentes, aparentemente indiferentes à frase de Brecht: “Infelizes os povos que precisam de heróis”. Aproveitando a exultação, o ilustre diplomata revelou os resultados da próxima reunião do COPOM. Os operadores do mercado financeiro pediram licença por alguns minutos e, a partir dos seus smartphones, jorraram ordens precisas. Pecunia non olet mesmo. A calma voltou ao CIL. Em apenas alguns dias, Lucy conseguira superar o abismo de milhões de anos que a separava dos seus descendentes. Nem todas as suas observações tiveram o dom de deixá-la mais feliz. Em tempo! O CIL ficou jubiloso ao saber dos pedidos de desculpas que se seguiram e aguarda a retratação do nosso Talleyrand, Marco Aurélio Garcia. Depois, todos irão para a paraia como em Nunca aos domingos. Lucy não entendeu patavina. Para ela, "Un coup de pied au cul" ou "kick the ass", já que parece que a entrevista que gerou a polêmica foi dada em inglês, dá na mesma. No momento ela procura como se diz chutar traseiro em romeno.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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