Conversa (des)afinada
O processo de integração de Lucy foi marcado pela sua surpreendente rapidez. Apesar de algumas dificuldades inerentes a qualquer ocorrência de progresso, os acúmulos quantitativos de conhecimentos - algo surpreendentes, é bem verdade, tendo em vista o potencial de absorção do cérebro símio (é forçoso admitir) - respeitaram a teoria marxista, e ao ocorrerem numa verdadeira avalanche, levaram ao previsível salto qualitativo. Lucy - e qualquer observador poderia confirmar isso - estava galgando os degraus da sabedoria, tornando-se filósofa. Vez por outra, ondas de incompreensão, abalavam Lucy, inúmeras vezes refém de dúvidas atrozes, mas para gáudio dos amigos da ciência, tratava-se de fenômenos passageiros. Lucy estava a ponto de tornar-se a coqueluche do momento, uma espécie de pop-star. O fato mais surpreendente era a naturalidade com a qual ela aceitava essa prodigiosa transformação. Qual não foi a surpresa dos seus tutores, quando Lucy resolveu desenvolver teses ousadas a respeito da convergência das palinódias e palimpsestos petistas e sua resultante para uma inevitável palinfrasia. “Lucy, o que deu em você?” Uma rápida consulta aos dicionários demonstrou a imarescível vocação política de Lucy, a ponto de surgirem convites para proferir palestras perante as mais sofisticadas platéias. Numa das mais recentes, seguiram-se debates acalorados, que por pouco não desceram ao nível - que para Lucy não chegaria a ser uma surpresa - das cavernas. “Lucy, o que você entende por palinódia petista?” “Ora, por definição, é a retratação - numa obra literária, ou por extensão num discurso - daquilo que se disse previamente” - respondeu calmamente o fóssil esclarecido. No caso do PT, falava-se em acabar com “tudo isso que está aqui”, e no frigir dos ovos, vitaminou-se a corrupção de ex-vestais. Houve algumas vaias, mas algumas bombas de efeito imoral acalmaram os presentes. Um dos presentes, famoso pela sua teoria segundo a qual Plesiosaurus e Pliosaurus seriam parentes próximos, manifestou sua curiosidade quanto a opinião de Lucy a respeito dos palimpsestos petistas. Depois do susto causado pelo estampido das bombas de efeito imoral, Lucy desvencilhou-se de sua máscara de gases - gentileza dos organizadores - e recorreu à definição que qualquer candidato ao ENEM domina, desde que haja um vazamento oportuno das questões. “É apenas um pergaminho cujo texto foi raspado para dar lugar a outro. Vejam como é simples. Antes das eleições de 2002, houve o manifesto de Olinda que falava claramente em ruptura. Como isso poderia assustar a burguesia e comprometer o resultado colimado, foi chamado um especialista em raspadinha. Esse raspou, como era de se esperar, e um calígrafo redigiu em cima do papiro uma ‘Carta ao povo brasileiro’, que foi selada e expedida.” “Nem sempre foi necessário raspar um texto inteiro. Há um exemplo recente de dupla substituição, o que poderia obrigar-nos a rever a definição de palimpsesto, ou cunhar outro termo. Pegou-se a palavra ‘privatização’ que foi substituída por ‘privataria’ e num momento ulterior usou-se o termo ‘concessão’. Ficou claro?”. Se ficou ou não claro, pouco importa. Ficou barulhento, isso sim. Mal contendo a curiosidade, o especialista em Pliosaurus indagou com um ricto macabro. “E onde entra a palinfrasia nesse seu discurso reacionário?” Para que esse relato tenha o mérito da autenticidade, e para que não seja possível acusar este escriba - presente por obra do acaso ao evento - de falsificação da verdade, ao relatar os fatos, é preciso dizer que Lucy parou por alguns intermináveis instantes. Pediu licença e foi consultar umas anotações. Não era o dia de sorte da claque mobilizada para desestabilizar o fóssil. Apesar das vaias e da chuva de impropérios, imprecações, injúrias e outros sinônimos, Lucy conseguiu dominar o tumulto. Milhões de anos de experiência foram de grande ajuda. “Autoridades presentes, gentis ouvintes, minhas senhoras, meus senhores, torcida barulhenta, palinfrasia - acabo de ler - é a repetição doentia de frases, algo à moda de um tal Goebbels. Essa repetição pode transformar uma bobagem, para não dizer mentira, numa verdade inconteste. E o melhor exemplo é...” “Fale logo, fóssil golpista”, entoou o coro progressista. “O exemplo mais flagrante é a frase Nunca antes na História deste País” A palestra, cujo inteiro teor está à disposição dos interessados no site www.lucy/blabla/abstracts_abcd.com ganhou um brilho peculiar depois da intervenção de conhecido senador que pediu aparte, e cantou, para delírio dos circunstantes Blowin´ in the Wind.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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