Conversa (des)afinada
Lucy passou por alguns maus bocados quando tentou fixar residência no Brasil. O problema, aparentemente insuperável, foi apresentar documentos que pudessem ser aceitos pela nossa burocracia. Em vão exibiu uma pedra tosca com a qual um amigo-fóssil houvera tentado, segundo a postulante ao visto de permanência, matar um Archaeopteryx lithographica. O funcionário do Departamento de Imigração logo pescou a burla anacrônica, já que se tratava de exemplar datando do período Jurássico, portanto mais de 100 milhões de anos anterior a Lucy. “Visto negado”. O carimbo fatal estava a milímetros da petição elaborada pelo grupo Amigos da Lucy - com página no Facebook e tudo - quando um deles teve uma ideia brilhante. “Ela está sendo procurada por ter matado quatro indivíduos. Ela fazia parte de um grupo Proletários-fósseis armados pelo comunismo (PAC)”. “Isso muda tudo”, retrucou o digno funcionário, impressionado pelo currículo e pela sigla. “Nesse caso, temos jurisimprudência. Seja bem-vinda, jamais será extraditada. Trate de escrever um livro”. Se as coisas decorreram assim, ou se há algum desvio em relação à verdade será impossível saber, uma vez que a cena não foi filmada e o relato merece ser tratado com algum prudente ceticismo. Fato é que Lucy logo se integrou à sociedade que a acolheu e progride intelectualmente de forma espantosa. Já é capaz de ler, mesmo se o acúmulo de informações a deixa muitas vezes perplexa. Mas não se trata de analfabeta funcional, eis que já devorou o livro que tratava “dos menino e dos peixe” na versão latina “De rerum puerorum pisciumque”. Inspirada em outra obra patrocinada pelo candidato à Prefeitura de São Paulo, Lucy sabe que 7 + 4 = 9. Como se vê, ela está no bom caminho e já pensa em alçar voos mais ambiciosos. Recentemente, esteve lendo o artigo “Crer e perseverar” de autoria de FHC. Como o autor não foi estigmatizado no livro “Privataria tucana”, Lucy mergulhou na leitura, de outra forma jamais o faria. Manteve alguma reserva por saber ser o autor ligado ao ‘abominável Serra’, autor de todos os ‘malfeitos’ - segundo o autor do livro - imagináveis. Mesmo assim, aventurou-se. Ela não entendeu por qual motivo “O triunfo dos mercados levou às cordas as colorações políticas”, mas logo lembrou de um tal James Carville que teria dito “It´s the economy, stupid” (dirigindo-se a outro interlocutor, naturalmente). Prosseguiu a leitura e emitiu um som gutural - para ela, sinal de espanto. É bom que se diga que apesar de ler, ainda experimenta dificuldades na fala, necessitando da presença contínua de um fonoaudiólogo que lhe serve de interprete. A frase que motivou o grito cavernoso foi: “O mais conhecido e denso (candidato) José Serra, amadurecido por êxitos e derrotas...”. Não era preciso ser Arquimedes para saber que o excesso de densidade pode motivar o afundamento nos mares procelosos da política. Quem é denso, que se cuide, murmurou Lucy. Outro grito - de menor intensidade, apesar de bastante agudo - foi causado pela metáfora relativa a Aécio Neves. Apesar de não ter convivido com neves - pela distância que separa a Etiópia do Kilimanjaro e por desconhecer o filme, que teria lhe possibilitado estabelecer uma correlação - Lucy não entendeu como poderia o “óbvio provável candidato transmitir uma mensagem que salte os muros do Congresso e chegue às ruas”. Saltar da xícara voltada para cima - ou daquela voltada para baixo - e chegar no Eixão? Lucy haverá de entender, tomara que seja antes de Aécio! Atenta aos eventos culturais, Lucy soube da descoberta de uma irmã da Mona Lisa, com um sorriso algo menos misterioso que o da obra-prima. De imediato, vieram-lhe à mente duas outras obras ainda longe dos museus. Uma delas representa a futura presidenta da Petrobras, numa foto sem fundo florentino, mas com os braços cruzados como a imortal Gioconda. A outra obra só tem em comum um sorriso com os lábios pinçados (sempre), igualmente misterioso, que deve ter sido o do ilustre Governador do Estado de São Paulo, ao constatar a terrível omissão de seu nome. Perplexa, Lucy perguntou a quem fariam oposição esses bravos mancebos, sendo informada que a oponente mais provável seria uma senhora que costuma “espancar projetos”, quando não se dedica à importante atividade da faxina. Por ter sido a responsável pela faxina de sua caverna, Lucy logo entendeu. Perguntou apenas qual o tratamento que se dava aos ‘faxinados’, tendo como resposta um silêncio constrangedor. Finalmente, Lucy achou uma graça enorme na frase que conclui o artigo, cujo significado assimilou de pronto: “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. No seu cérebro tosco uma dúvida instilou-se de pronto. “Se há tanta água, será que não dá para apagar a fogueira das vaidades dessas personagens?”.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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