Conversa (des)afinada
Revelações de um antigo manuscrito, encontrado por um arqueólogo amador. A autenticidade do documento suscita profundas controvérsias no mundo acadêmico. A hipótese de tratar-se de um documento apócrifo têm uma legião de partidários. Vamos ao papiro, ainda em excelente estado de conservação, antes que seja confiscado. Num reinado, onde em se plantando, tudo dá, o bobo da corte está fazendo anotações num caderno... Não para de escrever. Está concentradíssimo. O bobo-adjunto faz graçolas que, por vez, arrancam um sorriso real. O bobo-adjunto sonha tornar-se, um dia, o bobo-pleno. - O que escreve aí, companheiro bobo? - pergunta - intrigado - o monarca Lulix I, o gaulês. O queixo do monarca treme - sinal de profunda impaciência. Os olhos majestáticos emitem relâmpagos no espectro ultraviolento. - Anoto os nomes dos tolos do reino. A propósito, acabei de colocar o nome de Vossa Majestade nessa relação... com todo o respeito que jamais me faltará. O queixo do monarca quase cai. Mal consegue reprimir a fúria que o acomete. O crime de lesa-majestade está tipificado. - Mas que ousadia, verme imundo! Antes de mandar açoitá-lo, até seu lombo sangrar, esquartejá-lo ou atirá-lo num calabouço de onde jamais sairá com vida - ainda não decidi - pergunto-lhe qual o motivo dessa insolência? Já é um bobo estável no emprego. Quer perdê-lo, ficar sem o fundo de garantia? - a voz tonitruante da Majestade indignada faz vibrar os cristais do lustre do palácio real. Cesse tudo que a antiga musa canta, quando essa voz se alevanta. Um bardo caolho, de passagem, acha bonita essa parte e jura em sottovoce aproveitar essa observação. O bobo faz uma profunda reverência e retruca, pálido ao perceber o quanto irritou o rei, arrasado pelas negras perspectivas quanto ao seu futuro próximo. Finalmente articula: - O motivo é simples: Vossa Majestade entregou o Ministério X ao seu súdito, o Sr. Z da chamada base aliada. Ele vai roubar até cansar, se é que roubar cansaria o Sr. Z. Fraudar e roubar é só começar. - Jamais prejulgue, serviçal indigno! E se não roubar, miserável fofoqueiro? Chega de dar ouvidos às maledicências do PIG! Por acaso grampeou as ligações telefônicas do impoluto Sr. Z? Sua função - consta no job description, homologado pelo ISO - é divertir-me. Repito a pergunta: E se ele não roubar (ou pelo menos se o malfeito não for comprovado, por ser bem feito)? Responda, candidato à forca! - Nesse caso retirarei o nome de Vossa Majestade e colocarei o dele... A partir desse ponto, o manuscrito torna-se ilegível. * ... A substituição dificilmente acontecerá, dizem as más-línguas.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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