Fechou o livro. O Conde de Monte Cristo, com o sabor amargo da vingança de Edmond Dantés, estava colocado em cima da mesinha de cabeceira junto com a bandeja cheia de pequenas inutilidades. Olhou o relógio, depois o frasco de soro colocado a uma certa altura, acima de sua cabeça. Acompanhou fascinado, durante alguns minutos, a lenta descida da mistura que, no dizer dos médicos, o salvaria ou, ao menos, o ajudaria a combater seu mal, prolongando a luta. De sua cama podia ver um pedaço de céu, através das folhagens de uma árvore amiga, cujos ramos procuravam invadir o quarto. Impedidos pela janela, sempre fechada, projetavam suas sombras sobre a parede branca. Faltava mais de uma hora para a visita do médico. A porta abriu-se dando passagem a uma jovem enfermeira, que lhe perguntou: “Tudo bem?”. Com preguiça para entabular uma conversa, fez o seu polegar apontar para o teto. Sim, estava tudo bem. Melhor impossível. Estava tudo bem. Desde sempre. Imobilizado na cama do hospital, nos últimos dois meses, achava tudo aquilo extremamente aborrecido. Contudo, sua doença era uma realidade. Sua opinião a respeito não fora solicitada. Dizer que estava se debatendo para manter-se vivo seria um exagero. Transferira a incumbência ao seu organismo e permanecia na torcida. A batalha estava se travando nas suas entranhas. O seu aliado, a medicina, contribuía, dentro das próprias limitações, para tornar o combate menos desigual. A julgar pelo que diziam, tinha uma boa probabilidade de sair-se bem. Eles deviam estar falando a verdade. Desde o começo, nada lhe fora escondido. O quadro evoluíra de desesperador para estável, passando por preocupante. Aquelas semanas, experiência jamais experimentada em outras circunstâncias, o levaram a fechar-se ainda mais. Com o médico conseguira que as visitas fossem proibidas. Não queria que outros o vissem naquele estado. Era uma batalha solitária e odiava a idéia de poder inspirar compaixão. A proibição não incluía, obviamente, os familiares. Mas os compromissos diários de todos tornavam escassas as visitas e isso era muito bom. Eles tinham inúmeros problemas e ele, apenas um. A companhia predileta eram seus livros. Nada de leituras sofisticadas. O Conde de Monte Cristo, que ele conhecia de cor, não podia faltar. Divertia-se imaginando quais teriam sido as passagens que Dumas teria escrito e quais as de autoria de terceiros. A narrativa interrompida, sem lógica aparente e alguns remendos que não poderiam escapar a seu espírito crítico, o desafiavam para uma nova leitura. No fundo, estava matando o tempo, antes que este o fizesse. Toda a trama do romance lhe era extremamente familiar. Era o tema da punição dos maus e da recompensa dos bons. O herói, emergindo de seu sofrimento, fazendo justiça. Sentira-se sempre empolgado pela visão do autor de serem todos os estados apenas objetos de comparação. Somente quem houvesse provado a extrema amargura, poderia desfrutar da verdadeira felicidade. Um precursor da teoria da relatividade, aplicada aos sentimentos, em suma. Somente quem, como ele, passasse meses acamado, poderia apreciar o encanto de uma caminhada, seria o corolário inevitável. Era revoltante. Sempre soubera apreciar a ventura de estar vivo e captar a todo momento as evidências dessa realidade. Não precisaria estar lá largado, incapaz de qualquer esforço, refém de uma campainha por meio da qual poderia mobilizar a ciência médica que estivesse vagando pelos corredores do hospital, para chegar à conclusão de haver sido feliz sem ter sabido. Mesmo naquela postura indefesa, não estava de todo infeliz e tinha consciência disso. Ficar sentado à beira de si mesmo era surpreendentemente divertido. As lembranças, fiéis companheiras, nunca o abandonavam. Vez por outra, elas se embaralhavam e se aglomeravam numa ordem totalmente diferente da seqüência original. Para o corpo cheio de inteligência e quase desprovido de forças, aquilo não fazia a menor diferença. A enfermeira continuava movimentando-se dentro do quarto. “Que será que ela está pensando?” Provavelmente, deveria estar preocupada com os minutos que faltavam para concluir seu turno, antes de empreender a epopéia da volta para o bairro distante, no qual moravam ela e seus problemas, seja lá quais fossem. Tinham isso em comum. Ele também estava preocupado com os minutos que faltavam para concluir seu turno. - Amanhã não estarei aqui, viu? É meu dia de folga. “Pode ser que eu também não esteja, caso seja o início de minha folga”, pensou divertido. Era engraçado. Será que ela notaria a diferença? Com certeza. Os remédios não seriam mais os mesmos. - Vai me abandonar? Isso não se faz. - A saída momentânea do seu mutismo habitual, foi recebida com surpresa. - É só por um dia. Não vou abandoná-lo. Ninguém o estava abandonando. Que bom! Precisaria ter uma conversa séria, neste sentido, com seu corpo. Justamente agora, o monitor de batimentos cardíacos parecia estar acometido de alguma anormalidade, emitindo uma série de ruídos estranhos. O pedaço de céu revelado pela janela estava mudando rapidamente de cor, escurecendo, assim como o quarto. Coisa estranha, não conseguia acionar o controle de luz a seu lado. Percebeu uma estranha agitação, gente entrando e saindo, como se a sua privacidade deixasse de ser merecedora de respeito. Parecia-lhe reconhecer algumas vozes. Várias mãos o estavam tocando. Ainda iam levar o seu livro nessa confusão. Não poderia permitir que lhe fizessem isso. Insurgia-se contra a invasão. Ele, o paciente modelo, estava acometido por um acesso de rebeldia. Queria colocar para fora esses intrusos, cujas sombras se agitavam em volta da cama. Pouco depois, sentiu-se cansado, cansado daquele vaivém, cansado de esperar o médico. Como é que o doutor iria encontrar o quarto nessa escuridão? Só se fosse seguir a gritaria. Ele já devia estar a caminho, com seus óculos de aro fino. Viria sem falta. Pela primeira vez, em muitas semanas, não sentiu mais dor alguma.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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