A fachada era a mesma, nem parecia que trinta anos haviam se passado. O concreto aparente precisava de bem menos retoques que o seu rosto, pensou. Ao penetrar no saguão do colégio, a emoção apertou-lhe a garganta. Não era possível permanecer indiferente a tudo que o cercava. Passou apressadamente em frente aos elevadores que somente professores e pais de alunos podiam utilizar. Era como se o tempo tivesse parado e permitisse que, através de um atalho secreto, pudesse recuar três décadas. Como havia voado o tempo! Aluno de um colégio só, todas as lembranças convergiam para o mesmo lugar. Caminhou lentamente entre as portas fechadas das salas de aula, alinhadas de ambos os lados de um corredor, que lhe pareceu mais estreito do que no passado. Tomou água num bebedouro que já não era do seu tempo de aluno e continuou caminhando. Estava em pleno horário de aulas, não era à toa que tudo era silêncio à sua volta. Decidiu subir até a sala dos professores no segundo andar. Embora tivesse subido sem muita pressa, chegou ofegando, amaldiçoando a sua barriga cujos contornos um terno sob medida mal conseguia disfarçar. Era o que chamavam jocosamente de curva da prosperidade, naqueles idos tempos. Não poderia reclamar da prosperidade, apenas poderia reclamar da barriga. Estava na hora de iniciar mais um regime. Aproximou-se da sala dos mestres, bateu e entrou. Pouquíssimas vezes estivera lá como aluno, de modo que aquilo não chegou a impressioná-lo. Lembrava-se claramente de ter ido uma vez com mais dois colegas, para pedir uma nova prova de física, e de que o professor os recebera bem, mas isto fora o máximo que haviam conseguido: ser ouvidos. Não houve a tão desejada prova de chance. Lembrava as pesadas cortinas de veludo enquadrando as janelas e percebeu que tinham sido substituídas por persianas bem menos imponentes, possivelmente mais práticas. Havia como no passado várias escrivaninhas, em cima das quais microcomputadores - sinal dos tempos - reivindicavam seu espaço. No meio da sala, o mesão, o famoso mesão em cima do qual ficavam as provas, o que na época tanto o impressionava, estava lá tal como permanecera em sua lembrança. Alguns professores estavam sentados em frente aos micros. Um deles olhou na direção do intruso. - Bom-dia. - Bom-dia, o que deseja? - Eu fui aluno deste colégio, me formei em 1969, e vim matar as saudades. O professor levantou-se e veio cumprimentá-lo. Outros levantaram a cabeça movidos por uma certa curiosidade. Apertou a mão do professor, que devia ser mais bem mais jovem do que ele, e que o olhava cortesmente. - É pouco provável que encontre alguém da minha época, não é mesmo? - Também, o senhor esperou esse tempo todo para vir nos visitar! De nada teria adiantado dizer que durante quase todos aqueles anos, à exceção dos anos de faculdade havia estado fora do País, voltando apenas algumas poucas vezes e sempre por poucas semanas. - Nunca houve tempo, mas sempre quis voltar. Assim mesmo, será que não há mais nenhum professor da minha época? - perguntou olhando de soslaio o avental com o crachá de identificação do interlocutor. Souza M. ele leu com certa dificuldade. Decididamente, teria de começar a usar óculos. - O professor Otacílio é o professor mais antigo, disse o outro, sem muita convicção. - Otacílio de Matemática? - Sim, ele mesmo, teve aula com ele? Tivera sim. Naquela época era o carrasco do colégio, famoso pelos problemas que passava e por tiradas do gênero: “O senhor não parece estar se dedicando com afinco aos estudos e para a sua prova estou em dúvida entre lhe dar um ou zero. A apresentação do seu caderno decidirá. Ah, é zero mesmo.” Querido mestre, quantas vezes más apresentações de caderno haviam feito pender a nota para o lado do zero? Mesmo assim, raros eram os reprovados. O professor os chamava para aulas de reforço durante as quais dizia: “Vamos cuidar dos impermeáveis, vocês não imaginam como tudo isto é simples”. “Parto sempre do pressuposto de que vocês dominam a regra de três em todo o seu esplendor e extensão, logo haverá sempre uma esperança.” Sempre bem-humorado, pedindo desculpas por fazê-los raciocinar, fora talvez o mais querido pela turma, que até o havia escolhido paraninfo. E o discurso? Era como se ainda o ouvisse. “Vocês são o rio, eu sou apenas as margens. Como o meu colega de geografia tentou ensinar ao lhes falar sobre erosão, permaneço aqui, mas vocês terão levado algo de mim e para sempre o meu afeto. Se fui o primeiro a levá-los ao conceito de imaginário, que seja o último a sair do seu conjunto de lembranças reais.” Talvez não tivessem sido exatamente as palavras do professor Otacílio, afinal tanto tempo já havia transcorrido, mas essa era a mensagem, que tanto emocionara, formandos, pais, e até o próprio orador. Naquele momento o baixinho, como era conhecido, esteve transfigurado, magnífico e ao mesmo tempo tão cativantemente simples, como sempre esteve deduzindo fórmulas, demonstrando teoremas ou resolvendo os problemas cabeludos do temível livro dos irmãos jesuítas. Enquanto vasculhava as lembranças, subitamente trazidas à tona, dirigindo um olhar distraído para o que lhe parecia ser uma mancha no avental do professor Souza, ouviu-se o sinal de intervalo e, pouco a pouco, a sala foi se enchendo de professores. E lá estava o baixinho. Vinha com o mesmo andar apressado que lhe era peculiar. Os anos não haviam aberto exceção para ele, o pouco cabelo que lhe restava, completamente branco, tornava-lhe mais aceitáveis as feições envelhecidas. - Professor Otacílio, este senhor gostaria de lhe falar. - Sim, pois não. - Professor, - estava emocionado ao falar, - eu fui seu aluno em 68 e 69... - E veio entregar um trabalho atrasado?! Receio que não poderei aceitá-lo. E mesmo se aceitasse, só poderá diminuir sua média geral. Considerando uma penalidade de meio ponto, por ano de atraso, eu o prejudicaria. Continuava o mesmo galhofeiro. - Eu só queria vir lhe dar meu abraço, professor. - Obrigado, é sempre uma alegria ver de volta um dos meus alunos. E, então, a base foi boa? Está feliz? Peço desculpas, mas mentiria se lhe dissesse uma coisa do tipo: “Seu rosto me parece familiar”. Espero que seja franco o suficiente, para me dizer que se me encontrasse na rua, não me reconheceria. - Falava rapidamente, olhando-o com os olhos faiscando, como nos bons velhos tempos. Conversaram pouco. Mas a animação inicial foi aos poucos desaparecendo. Tinham muito o que falar sobre o passado, mas este passado comum jorrava nos gestos e olhares, tornando supérfluas quaisquer palavras. Por segundos, haviam revivido a magia do passado, que tornava o presente irrelevante. Despediram-se com generosos tapas nas costas e promessas de não deixar passar outras três décadas até um novo encontro. Saiu apressadamente da sala dos professores. O sinal marcava o fim do intervalo e uma multidão barulhenta estava se dirigindo para as salas de aula. Por alguns segundos, o senhor elegante cuja curva da prosperidade insurgia-se contra o rigor do corte do terno sob medida sentiu-se parte daquela multidão. Era o encontro com um momento feliz e que por nada neste mundo poderia perder. Crônica do livro “Almanaque Anacrônico”, Ed. Totalidade.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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