Otávio estava chegando a essa profunda constatação. Filósofo bissexto, aprendera a retirar de todos os pequenos eventos um ensinamento. Não por acaso, chegara à conclusão de que o tal princípio de Peter “Se algo pode dar errado, dará” merecia um adendo... “especialmente em se tratando de mim”. Ter de acordar cedo para participar de uma reunião fora do escritório, marcada por um cliente que conseguia alterar semana sim, semana não, o andamento do projeto, não era propriamente o ideal. Fazia parte do seu trabalho, ganhava para isso, mas ouvir de um filhinho de papai, encarregado de tocar os negócios do “velhão” - de forma calamitosa, diga-se de passagem - que “não conseguia identificar uma visão sistêmica no projeto pelo qual pagava seguramente muito mais do que devia”, era dose. Para proferir essa sentença tola, o outro achara de bom-tom chegar com quase uma hora de atraso. Em suma, a manhã entrou na coluna das perdas de tempo. Nesses dias de clientes receosos com a crise, era preciso engolir sapos. Há quem consiga beijar sapos e transformá-los em príncipes. Falta uma série histórica capaz de confirmar com rigor matemático quais os benefícios decorrentes da mera deglutição. Para Otávio, esse gênero de operação não apresentava atrativo algum, ou talvez ele não tivesse competência para tanto. E viva a dieta de sapos! O que mais importava era não perder o contrato. Concordar com uma eventual falta da tal “visão sistêmica”, não passou de um desconforto momentâneo. Duro foi ouvir, em seguida, que o cronograma de pagamentos teria de ser alterado. Nem precisou perguntar de que forma. O seu interlocutor arrogante já estava acenando com um atraso nos pagamentos. Alegava que, numa parceria verdadeira, o ônus de um eventual estrangulamento do fluxo de caixa poderia ser suportado por ambas as partes. Como de hábito, o lado mais forte solicitava a colaboração do mais fraco. O que fazer? Rezam os modernos princípios de administração que, toda vez que nada se decide numa reunião, a solução é marcar outra. Não foi diferente dessa vez. Já no carro, vidros fechados, ouvia o concerto para piano de Rachmaninoff - o número 2 - enquanto se aproximava de Porto Alegre. Decidido a não espalhar seu mau humor entre os subordinados, tentou imaginar o que poderia dizer para não deixá-los abatidos. Qualquer coisa, menos invocar o espírito de parceria de quem tinha contas a serem pagas no fim do mês. Para complicar, a maldita linha de crédito não fora renovada! Aumentou o volume, pisou fundo no acelerador. A Avenida dos Farrapos já o estava acolhendo. Rachmaninoff ganhara um acompanhamento à altura. Dono de apurado ouvido, Otávio cantava pam-pararam pararam pararam. Naquele instante, de uma rua perpendicular, um carro se aventurou na pista. Freada desesperada. O baque. Furioso, e mais persuadido do que nunca da existência de dias nos quais o melhor que se tem de fazer é não sair de casa, Otávio saiu e foi examinar os danos. A frente do seu carro sofrera um pouco, um farol quebrado, nada que uma boa oficina não conseguisse colocar em ordem. Do outro carro, cujo pára-choque, à primeira vista, era a única baixa a lamentar, emergiu uma mulher com ar aflito. Idade difícil de definir, pertencente à temível faixa etária de eclosão das belezas maduras que se inicia pouco depois dos trinta e, com alguma sorte, se aproxima dos sessenta. - Minha senhora, a preferência é minha. Será que não poderia ter prestado atenção? - Desculpe, eu estava distraída - ela tentou sorrir, iniciativa sufocada no nascedouro pelo ar furioso de Otávio. - Mas será possível? Se meus freios não fossem tão bons, ou se estivesse correndo um pouco mais... - Desculpe. Minha seguradora... - Esqueça a seguradora, como pode dirigir de maneira tão irresponsável? Possui habilitação? Duvido! Logo, foi se formando uma roda. Fato estranho, Otávio sentiu a raiva se dissipar. Talvez por notar que, além de madura, a beleza daquela mulher era notável. Examinou novamente o seu carro, balançando a cabeça como se quisesse deixar claro o quanto ficara mortificado por culpa daquela irresponsável. Não conseguiu manter a aparência acabrunhada. Com o auxílio de populares os carros foram separados. O carro da “barbeira” sofrera muito mais, por ter sido colhido lateralmente. Não fora só o pára-choque. Em volta, os comentários usuais. “Uma mulher no volante, só pode dar nisso”, “Alguém se feriu, mas já levaram”, “Falta colocar uma sinaleira, é a quarta batida este mês”. Daqui a pouco haveria polícia, precisaria enfrentar toda aquela chatice. Precisava resolver o quanto antes. - Então? - Senhor, vou lhe dar meu cartão. O senhor liga e lhe dou os dados da seguradora. Não posso fazer mais que isso. Desculpe. Pensando bem, era o que de melhor se poderia imaginar. Os argumentos de uma mulher bonita possuem o dom de acalmar os espíritos mais revoltados. Ouviu-se o som de uma sirene ao longe. Só faltava isso. Otávio pegou o cartão, resmungou um pouco, em resposta à rabugice ganhou um sorriso constrangido, entrou no carro, deu ré e continuou. Ao chegar perto do edifício no qual se encontrava seu escritório, o trânsito se tornou infernalmente complicado. Pouco depois entendeu o motivo. Uma grossa nuvem de fumaça preta envolvia o prédio. Jatos de água se transformavam em vapor, em contato com as chamas. Se o arrogante não fosse tão impontual, a reunião teria terminado antes, ele estaria no escritório tentando fugir das chamas. O acaso jogara no time dele. A batida garantira de vez a chegada depois da eclosão do incêndio. Há dias em que nem tudo dá errado, murmurou Otávio. Procurou, no bolso, o cartão de visita.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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