Conversa (des)afinada
No passado, a Inquisição, uma ONG com nobres propósitos que muito contribuiu para o progresso da humanidade, estendeu o uso do sambenito – adereço utilizado originalmente por penitentes para expressar arrependimento – àqueles que queria humilhar. Era uma espécie de libré, que os escolhidos para expiar pecados diversos – o principal deles sendo um desvio da maneira de pensar politicamente correta, no entender daquela ONG progressista – eram obrigados a usar. As cores eram variadas, correlacionadas com o pecado do pecador (de quem mais?). Pode-se falar sem exagero, tratar-se de uma espécie de poncho. Para outros, seria o ancestral dos atuais abadás, tão em voga nos festejos momescos. Há de se ressaltar, a bem da verdade, que as finalidades não eram as mesmas. A técnica da execração evoluiu ao longo do tempo, e os símbolos correspondentes sofreram notável aggiornamento. A estrela amarela fez parte disso. Isso nos leva ao famoso caso de DSK – Dominique Strauss Kahn – ex-homem forte do FMI. Acusado por uma camareira de tê-la estuprado, antes que fosse julgado, que dizer condenado, teve de se submeter a um massacre midiático, desfilando algemado sob as vaias da população novaiorquina enfurecida, com direito a ouvir um coro de Shame on you! Envergonhe-se. Acessoriamente teve de usar tornozeleira, foi submetido à proibição de sair da cidade de NY, tendo de pagar do próprio bolso (da esposa, para não fugir à verdade) o aparato colocado em ação para neutralizar os possíveis danos à sociedade, dos quais seria capaz, na visão da Justiça. Posteriormente, entrou em cena o famoso NEBI – não era bem isso – mas o mal está feito. Adeus (até segunda ordem) sonho de disputar, com reais chances, a presidência da França e adeus dignidade. E por que NEBI? O procurador Cyrus Vance está diante de sólidos indícios de que a acusação pode não corresponder ao que de fato aconteceu na suíte do hotel Sofitel, em Manhattan. Evidentemente, o fato de haver inconsistências na denúncia não inocentará DSK. Mesmo porque é notório seu apetite famélico por sexo. Mas antes de se estabelecer sua culpa, é razoável atirá-lo aos cães, na expressão do filósofo Bernard Henri Levy? Justifica-se algemá-lo como se esse sexagenário fosse uma espécie de Rambo – a imagem pertence ao jornalista Carlos Brickmann – capaz de aniquilar o vistoso aparato policial que o cercava? Tudo isso para demonstrar que os poderosos não merecem um tratamento diferenciado. Isso pode agradar a quem pensa estar, ou está ‘por baixo’, mas não deixa de ser uma forma de dar vazão ao ódio que o sucesso suscita em seres menos bafejados pela deusa Fortuna. Todos são iguais perante a lei. Isso não se discute – temos inúmeros exemplos disso no Brasil – mas essa demonstração de força era imprescindível? Para não ficar sem opinar, com o cuidado de não prejulgar, vamos examinar algumas das alegações da vítima. Ela afirma que DSK surgiu pelado do banheiro e se atirou sobre ela. Mas num hotel de certo padrão, a entrada de arrumadeiras não ocorre quando o ocupante está lá. Por que a senhora Diallo entrou? Será que sabia ou não que iria encontrar o insaciável fauno? Será que a rotina daquele hotel era diferente? As teorias conspiratórias sustentam que houve armação. Será? E agora a parte mais escabrosa. Ele investiu, rasgou-lhe a meia-calça e em seguida a obrigou a praticar sexo oral. Well, para a prática do sexo oral, essas “preliminares” são, no mínimo estranhas. A presença ou ausência de meia-calça tem algo a ver com o ato de felação, seja ele voluntário ou resultante de coação? Mais estranha ainda a alegação da coação para o sexo oral. Não é preciso dispor de uma imaginação excepcional para duvidar tratar-se de uma relação não consentida. Não estando DSK armado, a suposta vítima tinha perfeitas condições de moderar os ímpetos do agressor mediante uma mordida de maior ou menor intensidade, com ou sem prejuízo definitivo à anatomia do agressor. Ou não? Qual a opinião dos entendidos? A descoberta do sêmen do suposto estuprador em pontos distantes da suíte, descartada a hipótese de ser DSK possuidor de um aparelho reprodutor de longo alcance, não parece suspeita? A verdade sobre o que se passou realmente na suíte 2805 jamais ficará esclarecida, havendo apenas as declarações, obviamente conflitantes dos protagonistas. É desejo de todos que a Justiça dê a última palavra. Qualquer que seja a sentença, permanecerá a dúvida. E persistirá a pergunta: Qual a função do sambenito nos nossos dias?
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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