Conversa (des)afinada
Ensina o Houaiss (ou seria encina) que o solecismo é intromissão, na norma culta de uma língua, de construções sintáticas alheias à mesma, geralmente por parte de pessoas que não dominam inteiramente suas regras (p. ex., os chamados erros de concordância, de regência, de colocação, a má construção de um período composto etc.). Mas para que regras? Para que tanta celeuma se ´os menino pega o peixe`. Fica apenas a dúvida se ´os menino` pegaram um ou mais, já que o peixe tanto pode ser um, ou vários ou até o glorioso Santos F.C. Norma culta já era! Quem se insurgiu contra o tal manual estaria – segundo os defensores da obra – atingido por uma estranha moléstia: o desejo de falar corretamente é, obviamente, da seqüela: “o preconceito lingüístico”. O professor que corrigiria um “nóis vai” estaria, em última análise assediando moralmente o autor da pérola. Há quase meio milhão de obras que contém: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”, possivelmente para acalmar os ‘afoito interessado’, aos quais restará esperar até que “os livro seja devolvido”. No entanto, além do MEC, que aprovou o tal livro, há quem o defenda ardorosamente. Do alto do seu doutorado, o professor Marcos Bagno ensina: “Já no governo FHC, sob a gestão do ministro Paulo Renato, os livros didáticos de português avaliados pelo MEC começavam a abordar os fenômenos da variação linguística, o caráter inevitavelmente heterogêneo de qualquer língua viva falada no mundo, a mudança irreprimível que transformou, tem transformado, transforma e transformará qualquer idioma usado por uma comunidade humana. Somente com uma abordagem assim as alunas e os alunos provenientes das chamadas “classes populares” poderão se reconhecer no material didático e não se sentir alvo de zombaria e preconceito. E, é claro, com a chegada ao magistério de docentes provenientes cada vez mais dessas mesmas “classes populares”, esses mesmos profissionais entenderão que seu modo de falar, e o de seus aprendizes, não é feio, nem errado, nem tosco, é apenas uma língua diferente daquela – devidamente fossilizada e conservada em formol – que a tradição normativa tenta preservar a ferro e fogo, principalmente nos últimos tempos, com a chegada aos novos meios de comunicação de ´pseudoespecialistas` que, amparados em tecnologias inovadoras, tentam vender um peixe ´gramatiqueiro` para lá de podre”. Discordar? Quem há de? Parece a continuação de um outro texto erudito, versando sobre as variedades lingüísticas, cuja tradução aproximada segue abaixo: “O pior, senhorita, é que alguns, por exemplo, em um Latim que supõem ser Espanhol, dizem: ”Sofro dos meus dois fígados ao mesmo tempo”, dirigindo-se a um francês que não sabe uma palavra de Espanhol; no entanto esse o entende como se fosse seu próprio idioma. Até acredita que seja sua própria língua. E o francês responderá, em Francês: “Eu também, senhor, sofro dos meus fígados”, e será perfeitamente entendido pelo espanhol que terá a certeza de ter sido em puro Espanhol que lhe foi respondido, e que a conversa se dá em Espanhol... quando, na verdade, não se trata nem de Espanhol nem de Francês, e, sim, de Latim à moda neo-espanhola...”. (E. Ionesco in La Leçon - não cabe traduzir o título, já que a Zelite domina o Francês). Mantido artificialmente no formol, o Português escorreito pode evoluir tranquilamente para um idioma ex-correto. Por que não? É a Revolução Cultural em marcha. Pelo jeito, quanto mais inculta, mais bela ficará a última flor do Lácio.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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