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COLUNISTA
Alexandru Solomon
10/04/2011 - 10h01
O pacto
 
 

De tão entretidos que estavam, Luís e Luíza - se a algum curioso ocorrer perguntar: “Por que Luíza e não Luísa?”, a resposta só poderá ser fornecida por um obscuro tabelião de ***, cidade que viu nascer nossa heroína - nem perceberam que faltava pouco para o barzinho fechar. Estavam lá havia mais de uma garrafa de vinho tinto e alguns acepipes - marca registrada do estabelecimento - sem fazer menção de arredar pé. Seu Jónatas circulava entre as mesas, e como boa parte delas já estava desocupada, procurava insinuar aos remanescentes que nada tinha a opor à sua retirada. Indiferente à mímica, Luís pediu uma água sem gás e uma porção de fritas. Em nome de uma longa amizade e em retribuição ao sorriso do freguês, Jónatas bateu em retirada atrás do balcão, de onde delegou a espinhosa tarefa a um garçom sonolento.

- Melhor irmos embora, já é tarde. - sugeriu Luíza - que tal?

- Vamos concluir o papo. Está com pressa? Eu, não.

- Então, o que acha?

- Querida, por mais de duas horas, você mencionou uma série de fatos, alguns reais, outros produtos de sua imaginação. Ficou revirando um passado, sobre o qual bem sabe, não tenho poder algum. Talvez se fosse membro do Politburo da antiga União Soviética, poderia tentar, mas, na minha condição, isso é totalmente impossível. Homero já disse: “Deixemos o passado ser passado”. Pense nisso.

- Querido, devo ainda lhe dizer que continuo gostando de você apesar de tudo que aprontou? Adoro suas tentativas de desviar a conversa. E, para não ficar devendo, citarei Anatole France: ”Não percamos nada do passado. Só a partir dele construímos o futuro”.

Evidentemente, eles estavam “discutindo a relação”, como todo casal moderno deveria fazer. Luíza fizera questão de, mais uma vez, colocar alguns pingos sobre os correspondentes is descobertos, animada por algumas de suas leituras recentes. A noitada, iniciada de forma alegre, caminhava célere para a acrimônia. Tudo isso porque uma antiga aventura de Luís ocorrera paralelamente - pelo espaço confessado de um encontro - com essa relação, agora colocada sob a lupa implacável de Luíza. Não se tratava de uma descoberta recente. O fato, a posterior confissão e um aparente perdão, nessa ordem, já haviam ocorrido “no milênio passado”, e sobre isso estavam de acordo. Uma ligeira inclinação de Luíza para a arqueologia - prima afastada da psicanálise - trazia regularmente à baila o famoso incidente. A exemplo de Heinrich Schliemann, que identificou o local da antiga Tróia na colina de Hissarlik, e ali descobriu sete cidades superpostas, destruídas por guerras ou catástrofes, Luíza pensou ter descoberto outros deslizes na conduta de Luís. Movida pelo desejo de equiparar-se a Schliemann, o fato de haver detectado um número de pecados inferior ao das cidades sobrepostas mantinha acesa a chama da eterna vigilância... sobre um passado, regularmente passado a crivo. Diga-se, a bem da verdade, que, em nome da transparência, houve - após resistências em grau diverso, partindo sempre de malsucedidas negações peremptórias - completa e detalhada confissão, seguindo-se uma espécie de anistia efêmera. Mesmo assim, a qualquer instante, o zelo investigativo de Luíza recrudescia. Didaticamente, sentia-se na obrigação de proceder a uma breve recapitulação dos “delitos”, para poder com a segurança reforçada por ditados como “Quem já fez fará novamente”, reabrir processos transitados em julgado, em busca de novos fatos velhos. Outras vezes, alusões inequívocas, nos momentos mais inesperados, substituíam a metódica passagem em revista. Mercê de uma incomparável perícia, as alfinetadas - em meio a reuniões sociais, por exemplo, - eram aplicadas de tal maneira que uma frase anódina passava despercebida, ou quase, aos presentes, mas vibrava um golpe certeiro na epiderme do alvo em mira.

Por sua vez, Luís contra-atacava, munido de armas generosamente fornecidas pela sua prodigiosa oponente - na forma de confissões espontâneas -, recebendo em troca respostas irrefutáveis: ”O J... foi antes de nos conhecermos, E... foi um caso que inventei para poder arrancar mais alguma coisa de você, M..., se é que era esse o nome dele, o de olhos verdes, saiu do motel sem saber quem eu era, então, como pode querer comparar? Isso sem contar que eu me adiantei e sempre, sempre contei tudo, não fiz seu jogo de tentar vender uma imagem que seus feitos vieram desconstruir. Nenhum desses casos têm menos de quinze anos.” Diante de tão eficaz linha de defesa, Luís batia em retirada, indignado - ou fingindo indignação - com a acuidade visual da pessoa querida, capaz de identificar com facilidade o argueiro no olho do outro, sem menção alguma à trava no seu.

Evidentemente, essa era uma estratégia perdedora. Longe de desarmar Luíza, qualquer tipo de resistência tornava-a mais ácida, quando não injusta, nas observações.

- Querido, não quero ofendê-lo, mas, no seu caso, o apoio de um profissional competente poderia ajudá-lo a descobrir o que deseja realmente. Mergulhe dentro de si, pois lá estão as respostas.

Para selar os lábios da promotoria, a melhor receita ainda é um beijo, e o que mais poderia advir em seguida, velho truque de difícil aplicação nos tribunais, porém de eficácia comprovada em lides amorosas. Infelizmente, isso nem sempre é factível. Naquela noite, havia uma mesa a separá-los. Felizmente a chegada das fritas - e a presença do garçom - surtiu um efeito comparável. Ambos sabiam perfeitamente tratar-se uma trégua fugaz. Luís decidiu tomar a iniciativa.

- Lu, isso não passa de papo-furado.

Os olhos de Luíza atiraram centelhas, tamanha a indignação. Um gole de água, mal conseguiu aplacar a braveza. Com suave ferocidade redargüiu:

- Falar em papo-furado, com seu retrospecto é, é, é...- procurou a palavra definitiva no seu vasto arsenal, mas achou mais produtivo retardar-lhe a proferição, por saber o quanto a expectativa gera um desgaste maior no interlocutor.

- Lu, trata-se de eventos sepultados. Quem os torna insepultos é você com sua incurável mania de exumar.

- Não fosse sua “incurável mania” de praticá-los, não haveria o que exumar.

- Se consentiu perdoar, por qual razão insiste?

- Perdoar, eu perdoei, só não consigo esquecer. Por isso acho que vale a pena procurar um psicanalista, que talvez consiga orientá-lo.

- Há momentos em que torço por uma crise de amnésia sua. Que diabo! Em proporções diferentes, deixamos uma ou outra vez de sermos santos. Pela milésima, e sei não se tratar da última vez, pergunto: Para que tudo isso? - Evitou lançar um “cui prodest”, ao lembrar-se da tempestade que essas inocentes palavras haviam criado numa altercação semelhante. Não havia como escapar desses agastamentos. Uma vez iniciado o processo, em todo ponto similar à autocombustão, o roteiro era previsível, a menos do epílogo. Com o acirramento dos ânimos, a reconciliação poderia demandar de alguns minutos a um ou mais dias, úteis ou não. Geralmente Luíza sugeria, como havia poucos minutos fizera, retornar ao assunto em outra oportunidade. Até lá, isso já era fato consagrado, ela se tornava um bloco de gelo. Era tudo que Luís não queria. Suspensão, não, encerramento definitivo do assunto, sim. O sonho quase impossível era conseguir uma sepultura à prova de futuras incursões que pudessem alimentar esse gênero de disputa. Invariavelmente, esse diálogo estéril oferecia saídas que resultavam no pior dos mundos: por não querer interrompê-lo, a briga continuava por mais um tempo sem sinalização alguma de conclusão definitiva, ao passo que propor a interrupção - privilégio exclusivo de Luíza - era a maneira segura, ainda não patenteada de conseguir o efeito oposto. A antiga norma de não passar uma noite brigados, de há muito perdera a validade.

De que adiantava apresentar uma “ficha limpa já há mais de cinco anos”, se os antecedentes continuariam eternamente presentes?

- Ficha limpa? Aprendeu a disfarçar melhor, isso sim.

A tentativa de deixar de retrucar falhava ante as repetidas investidas de Luíza, que interpretava os silêncios como prenúncio de novas confissões.

Sangue de barata, ele não tinha. A conversa recomeçava com redobrado vigor. Restavam precisamente três batatinhas, ou teriam sido quatro, quando Luíza inovou na arte da tortura:

- Tenho uma sugestão.

- Diga qual é.

- Será preciso nos afastarmos um do outro por um tempo. Você poderá, uma vez livre de minhas perguntas e insinuações, que tanto parecem incomodá-lo, descobrir o que realmente deseja.

- Viva a ausência de perguntas, mas nada de afastamento. Que loucura é essa?

- Não é loucura, sabe que não. Precisa realizar essa introspecção da qual tanto falei.

- E você?

- Farei o que tiver vontade. Mas algo eu prometo: não haverá questionamento nenhum relativo a esse período. De parte à parte.

- Não manteremos contato algum?

- Olha, se for preciso, vou ao Rio. Pode até ser melhor.

- E nenhum contato? Nada? Isso não pode ser sério.

- Só assim poderá encontrar as respostas de que necessita, já que sei que de alguma forma eu posso estar tolhendo você.

- Mas que bobagem! Não está tolhendo....

- Claro, devo dar-lhe razão: nunca deixou de fazer...

- Deixe-me terminar: Não está tolhendo nada, pois nada farei.

- Já disse isso incontáveis vezes.

- Estou com atestado de “Antecedentes melhorados”.

- Nem quero voltar a falar sobre isso.

- Seria bom, em nome da objetividade, reconhecer que faz tempo não há mais motivo para o menor reparo à minha conduta.

- “Inicialmente enganamos a nós mesmos, para depois enganarmos os outros”, já dizia Oscar Wilde. Gostaria de saber em qual dessas etapas está no momento.

- Na etapa do desencanto com esse assédio moral.

- Por isso mesmo, acredito que o afastamento que proponho terá um efeito salutar.

- Tudo bem. Concordo. E de quanto tempo será esse interlúdio?

- Sem gozações, por favor. Uma semana. Talvez quinze dias. Quem sabe um mês.

- Nada além de nove dias. Não posso concordar com mais, e até penso que me dará razão.

- Por quê?

- Porque daqui a dez dias temos a festa das nossas bodas de ouro!


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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