Conversa (des)afinada
Vivemos uma época na qual pulchrum et honestum – bonito e honesto – não tem vez. Estamos perdidos no meio de eventos e informações capazes de fazer-nos duvidar de nossa sanidade mental. Sempre partindo de uma base sã, chegamos a duvidar de tudo que nos ronda. Falemos de política externa. Nosso Guia Luminoso, atualmente desempregado, visitou os presidentes do Egito, da Guiné, de Cuba, do Gabão – aquele com nome de ração canina – e na imprensa, em maior ou menor grau, havia algumas reticências a respeito deles. Caiu Mubarak. Páginas e páginas dedicadas à queda do monstruoso ditador, que até recentemente merecia apenas o rótulo de chefe de estado, com menções esporádicas à longevidade do seu mandato. Paira uma intensa felicidade decorrente da queda daquele senhor. Fala-se numa nova era de democracia, na queda do Muro do Oriente Médio. E os outros? O tiranete da Coréia do Norte? O Ahma? Quando chegar a vez deles, seremos revolucionários desde criancinhas? Por aqui, entorpecidos pela retórica fluvial do Nosso Guia Luminoso, chegamos até a acreditar na existência de uma herança, que para mais de 80% dos habitantes dessa franja do Paraíso, teria sido maldita. De repente soam alarmes de todos os lados. Nossa dívida bruta escala píncaros como “nunca antes”, mas nos dizem que a dívida líquida vai recuar de 43% para 40% do PIB, em 2011. Que boa notícia, não fosse a dívida líquida obtida a partir da bruta, da qual se subtraem créditos mais ou menos dignos de fé. Algumas vozes arriscam tratar-se de uma herança podre, mas a retórica oficial mantém um silêncio reverencial, com fundo musical triunfalista. A inflação, que um dia foi do chuchu, mais recentemente do feijãozinho, acordou. Claro que não chega, nem chegará a níveis como nunca antes nessepaiz, mas justifica-se alguma preocupação. O que lemos? “Isso já estava dentro das previsões”, apud Mantega. Afirmam nossos Sartres de plantão: “O inferno são os outros”: as commodities, as chuvas, as secas, a Comunidade Européia, o QE2 etc. É como dizer a um doente que o problema dele são uns bacilos vindos de fora. Logo, não se preocupe, amigo, fique quieto e se forem superbactérias, azar! Melhor ainda, tomaremos medidas. Excelente. Reduziremos nossos gastos em R$ 50 bi, já que o aumento da Selic e as tais medidas macroprudenciais não esfriaram suficientemente a economia. De criogenia os órgãos fazendários entendem. O esforço se propaga. O presidente do Senado cortará as horas extras dos diretores. São muitos os diretores, mas, sejamos sérios, deixando de lado a fábula do passarinho que leva água no bico para apagar um incêndio, cumprindo assim sua missão, esse corte não faz cócegas. Caso Sua Excelência, que um dia mandou caçar bois no pasto, resolvesse cortar “cargos-extras”, “diretores-extras”, até pagou dois estudos da GêVê para encontrar soluções, faria mais sentido. Outras notícias alvissareiras vêm do front. Nada de carros novos, nem de reforma em prédios administrativos. Podemos respirar aliviados, mesmo sem saber o quanto isso representa, mas algo nos diz que o primeiro bilhão foi resolvido. Quanto aos 49 outros? Bem, cortaremos emendas parlamentares, com o cuidado de ficarmos apenas nas emendas sem tocar nos sonetos, e, e... bem, calma, se preciso for, será baixado um ucasse impondo o uso frente verso do papel higiênico. À la guerre comme à la guerre, como dizem os vendedores de Rafale na fila de espera. Sobretudo não tocar no PAC! O que seria tocar no PAC? Levar adiante ou talvez adiar projetos cuja viabilidade não foi demonstrada? Ninguém segura este País, como se dizia em tempos idos. Nenhuma seguradora toparia! Diziam os cínicos de plantão. De qualquer maneira esse ‘tocar’ é tão vago... Queremos a piscante Belo Monte, o Trembalabrás. O BNDES está aí com sua seringa pronta para injetar recursos drenados a taxa Selic e remunerados a juros menores, dentro da perfeita lógica de: “Lá na frente tudo se ajeita”. Outro problema que já causa debates – sempre de olho na caixa registradora da viúva é o novo salário mínimo. Os “oportunistas”, na magistral definição do Nosso Guia Luminoso, sempre loquaz e antenado, discutem: Será R$ 545, 560, 580, ou 600 como deseja parte de nossa combativa e destemida oposição? Em tempos de aperto de cinto, como soa essa discussão? Há quem afirme que depois do aumento escandaloso que o Legislativo se auto-outorgou, passar para o nível de ao menos R$ 560 é uma questão que nem cabe colocar de tão óbvia; seria uma obrigação moral. Mas é importante esclarecer. O aumento das Excelências foi uma indignidade, uma patifaria, uma afronta. De acordo, mas os recursos envolvidos na mexida do Salário Mínimo são muito maiores. Retirar aqueles não viabiliza a majoração do SM além do acordado. Pacta sunt servanda – os pactos devem ser respeitados, mas como fica nosso endeusado jeitinho? Derrubar aqueles aumentos escandalosos com seus deletérios efeitos cascata faria um bem enorme à nossa auto-estima e as nossas finanças e mesmo sem resolver o problema de caixa vale um desfile de caras lavadas. Os que timidamente afirmam que aumentos maiores do Salário Mínimo impactam a Previdência recebem de imediato uma resposta fulminante. “O problema são aqueles que nunca contribuíram e a responsabilidade, no caso, é do Tesouro”. O tesouro... Aquele cofre recheado de pedras preciosas numa ilha deserta? Nada disso. É seu, meu, nosso dinheiro. Sai Previdência e entra Tesouro e tudo se resolve? Argumentar que os nobres propósitos do legislador quando da criação do Salário Mínimo não serão atendido nem com o dobro dos valores propostos não passa de vã oratória, ou da constatação do óbvio. Existe o possível e o desejável e eles raramente coincidem. Afirmar que algumas prefeituras quebrarão, pois mal conseguem pagar esse piso? Perda de tempo. Há ainda os raivosos que afirmam ser suficiente não pagar os juros de nossa dívida e Abracadabra, tudo resolvido. O que viria depois? Nisso pensaremos amanhã sustenta a escola Scarlett O´Hara. Curioso é ver os sindicatos empunhando essa bandeira de aumento maior do SM, quando provavelmente nenhum dos seus “sócios atletas” ganha salários tão baixos. O nome do jogo é outro: Mostrar força, acuar A Executiva - ou seria O Executivo? – e ganhar gordos prêmios de consolação. Neste caso, tudo dependerá dos votos de Tiririca, Romário e quejandos. Não é uma maravilha?
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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