Aprender a perder. Nada como isso para se conseguir moldar o fracassado perfeito. Irão dizer, naturalmente, que dos erros se extrai a sabedoria suficiente para evitar repetir equívocos antigos. Mas para que se aborrecer com os velhos deslizes se há tantas formas de inovar? Seremos para sempre reféns das “variações sobre o mesmo tema”. Desde criança, Sérgio ficara cativado pelo mito de Sísifo, o herói famoso pela sua inteligência, cujo castigo consistiu em empurrar uma pedra até o topo de uma montanha. Mal terminada a tarefa, a pedra rolava ladeira abaixo e ao condenado só restava recomeçar a tarefa. Os anos passaram. Sérgio estudou, formou-se, seguiu uma trajetória profissional ascendente, apaixonou-se e... casou. Helena, a encantadora esposa, logo tratou de transformar-lhe a vida num inferno. Por uma questão de justiça, é importante dizer que Helena adorava Sérgio. Mas, aí é que estava o busílis do himeneu, diria um historiador anacrônico. Ela não conseguia gostar de uma única pessoa. Pior, ela era capaz de viver paixões simultâneas. Mesmo situando o marido no degrau mais alto do pódio, havia nessa plataforma sentimental diversos degraus acomodando os demais afetos. Para Sérgio, a descoberta - não fora preciso ser um emérito detetive para chegar à deplorável constatação - assestou um golpe do qual pensou jamais poder se refazer. Adeus sossego. Como poder trabalhar tranqüilamente com a dúvida a martelar-lhe incessantemente a cabeça? Inúmeras conversas francas tiveram, como único efeito, maior dissimulação da parte da esposa volúvel. De imediato, Sérgio formulou a inevitável pergunta: “Onde foi que errei?”, seguida quase que imediatamente de outra mais aguda: “Vale a pena continuar assim?”. Não encontrou resposta para a primeira. Quanto à segunda, forçoso foi admitir ser afirmativa a resposta. Não há lógica que dirija as atitudes de quem ama. A princípio, as reações foram violentas: gritos, ameaças e brigas intermináveis. Com o tempo, diante da constatação da absoluta inutilidade desse gênero de explosões, houve a tentativa de criar uma fachada de aparente indiferença. Incapaz de se livrar do encanto e relutante quanto a uma atitude mais drástica, capaz de levar à ruptura, Sérgio aprendeu a perder. Cruel aprendizado, baseado na crença ingênua de poder, através da inação, desestimular a infidelidade conjugal. Movido por um ceticismo tardio quanto à possibilidade de conseguir transformar Helena em esposa fiel, o infeliz partiu para concessões. Será que ele é tão importante para você? Por que não dá um basta nisso? Já saiu com ele, precisava tornar a vê-lo? - Querido, não tive culpa. Sabe como sou... E sabe também que os outros não chegam a seus pés. - Mesmo se eu andar descalço - tentava troçar o infeliz. - Meu amor. Basta você não estar perto... bem... - Mas, meu amor, nós trabalhamos. Como quer que fique perto de você? Pior, você tinha prometido que o Alberto ia ser o último e, agora, vejo que a fila andou. Não consigo mais trabalhar. Os colegas não param de cochichar. - Querido, vamos tentar de novo. Prometo que desta vez será diferente... - Está bem. Jure que nunca mais... - Juro. E lá ia o moderno Sísifo, empurrando para cima a pesada pedra da confiança vacilante, que, após uma calmaria de alguns dias, tornava a rolar ladeira abaixo. Desolado, Sérgio recomeçava a pedir, a suplicar, a implorar, a obsecrar, diria um observador mais pedante. Helena, o rosto banhado em lágrimas, prometia nunca mais recomeçar, para, em seguida, sucumbir ao encanto de algum príncipe encantado de plantão. Comemoraram, assim, cinco anos de um casamento, no mínimo agitado. “Bater de frente” com Helena era o erro a não mais ser repetido, sob pena de se transformar em farsa, como muito sabiamente alguém já disse em contexto diferente. Para que o casamento perfeito, na primeira semana, não se transformasse de forma definitiva em rematado fracasso, Sérgio experimentou por alguns meses os serviços profissionais de um analista. A conclusão à qual chegou é que ficara mais pobre o número de sessões multiplicado pelo valor da consulta. Romper com o analista não foi difícil, mas continuou na mesma situação angustiante. Foi quando no horizonte surgiu Roberto, velho amigo de escola e confidente nas horas amargas. Roberto estava de volta à cidade natal depois de alguns anos passados fora. Sérgio contou tudo. Só não chorou por não passar por maricas. Roberto ouviu, abanou a cabeça, acendeu seu cachimbo, soltou algumas baforadas, politicamente incorretas, e as acompanhou com uma sentença irretorquível: - Cara, assim não dá! - Não pode imaginar o quanto sofro. - Posso sim. Acho que seu erro é demonstrar o quanto tudo isso o magoa. Fala o tempo todo no seu sofrimento para ela e depois, passa a borracha e recomeça tudo de novo, como aquele personagem grego... - Sísifo. - Isso mesmo. - No seu lugar, sabe o que eu faria? - Diga. - Veja, vai me dizer que é bobagem, mas tem de dar um ultimato e depois, se acontecer de novo, seja homem. Vire as costas de uma vez. Avise antes, ser essa a última vez e ponto final. - Não vejo lá muita originalidade no que você me disse, a fórmula “Última vez” já se banalizou, mas seguirei seu conselho. Assim foi. O casal teve mais uma das intermináveis sessões de auto-flagelação permeada de juras. Passaram-se algumas semanas. Tudo parecia correr bem. Roberto ligava de vez em quando para ficar a par da evolução do caso, ou então visitava o casal. Uma das visitas foi bastante desastrada. Foi quando Sérgio os surpreendeu... com direito a presenciar movimentos precipitados da dupla em pânico. E, então, operou-se o milagre. Sem a menor mágoa, enquanto os dois tentavam explicar não ser aquilo o que tão descaradamente parecia, Sérgio arrumou alguns objetos numa pequena maleta e, cansado de empurrar a pedra morro acima abandonou o lar. Semanas depois, Helena casou com Roberto. Diferentemente do herói mitológico, o moderno Sísifo encontrara um substituto. As lendas existem para serem aprimoradas.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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