Se a vontade de fazer prevalecer seus desejos valesse algo, já estaria milionário. Mas hoje, dezenas de cartas depois, ele estava prestes a se render a uma triste evidência ao perceber que ela dificilmente lhe daria qualquer atenção. Afinal, misturado com os seus coleguinhas de 14 e 15 anos, excetuando o ocupante teimoso da mesma carteira da mesma classe, por três anos, ele era mais um anônimo, ao passo que ela, ela era a menina superlativa do colégio, prestes a se formar e sumir tragada por alguma carreira vitoriosa a se iniciar com o ingresso na faculdade. Claro que ele tinha tentado de tudo. Quase que diariamente corria até a biblioteca do colégio, passava horas mergulhado em poemas e, depois, tentava armar alguma estrofe que o fizesse merecedor de um sorriso dela, daquele lindo sorriso impregnado de um toque romântico. Além de escrever e rasgar, sempre acabava conseguindo encerrar num envelope um pedaço do próprio ser, algo que lhe parecia indigno dela, mas do qual ela teria de tomar conhecimento. Depois, feito um robô, ia até a agência do correio e atirava mais uma garrafa ao mar, mesmo adivinhando que o destino ia ser algum recife de indiferença. Essa era a parte suportável do sofrimento. Escrever para a sua Dulcinéia só lhe dava alegrias. O verdadeiro sofrimento começava quando passar ao lado dela não provocava nada além de um cumprimento vago, um olhar indiferente, e aquele cochichar no ouvido do amigo ou da amiga que a acompanhava, ou, pior, aquele riso cristalino que lhe britava a alma. Naqueles momentos, sentia-se admirador ridículo, bardo frustrado, objeto de chacota. Enfim, amaldiçoava a sua condição de refém da própria loucura. Imediatamente, começava a sonhar com proezas suas, que o colocariam num altar na frente do qual ela iria se ajoelhar. Mas, e como era doce sonhar, aí já seria tarde demais. Pois ela sofreria o castigo da indiferença dele, o autor do gol da vitória do colégio na final do torneio nacional, o novo recordista da prova de 100 m nado livre, o autor do roteiro do filme vencedor do Oscar, um dos descobridores de uma terapia revolucionária que subjugasse o câncer. Não, não seria tarde, ele saberia perdoar, generosamente abriria os braços à ingrata, que neles encontraria o refúgio, o perdão, o carinho. Durante as aulas, esses vôos o levavam a ostentar um sorriso beato. Vivia diálogos imaginários, os quais a levavam, invariavelmente, a reconhecer o quanto ele sempre representara na vida dela. Nunca havia contado para ninguém. As escapadas à biblioteca eram explicadas a quem quisesse ouvir, e mesmo a quem não quisesse, como sendo uma preparação para o vestibular. Para os pais, o fato de ele ter abandonado videogames só não explicava porque agora, que ele ficava sempre lendo e escrevendo, praticamente ignorando o grupo de amigos barulhentos, não havia o mais tênue vestígio de melhora nos boletins escolares. Procurava encontrá-la e, quando surgia a oportunidade, tinha de fazer um esforço enorme para não se esconder. Assumia as cores do arco-íris isoladamente ou de uma vez só, quando, então, empalidecia. Ah! o professor de ciências tinha toda a razão: a mistura das cores dava um branco lençol no rosto dele. Apesar de tudo, uma coisa o deixava tranqüilo, ou quase. Não havia aparentemente um namorado firme. Então, cada nova carta enviada, parecia espantar o namorado da vez, e isto o fazia redobrar seus esforços. Chegou a acreditar que seus alexandrinos trôpegos afugentassem os rivais. O fato de haver tantos significava apenas que um a um iam caindo os obstáculos para um maravilhoso encontro. Finalmente, num momento de audácia, escreveu: Um encontro se pedisse Com certeza dirias não Nem percebes que maltratas Este pobre coração Depois de muito hesitar, caprichou num papel de carta com fundo romântico-pastoril e enviou. Parecia aqueles papéis de carta que a sua irmã sempre colecionou e que sempre foram objeto de zombaria na família. No dia seguinte, morto de medo, no intervalo, sentiu que o “algo” estava para acontecer. Ou melhor, pressentiu. Ela se destacou do grupo e se aproximou. Era a aproximação de uma fada. Os lábios deliciosamente pintados se abriram num sorriso. E, sem poder reagir, ouviu da musa: - Menino, você é muito criança, mas se tiver um apê podemos ir. Infelizmente, para a sua poupança, será um baque. Virou as costas e se afastou, ondulando deliciosamente. Crônica do livro “Almanaque Anacrônico”, Ed. Totalidade. Disponível nas livrarias Cultura, Saraiva, Laselva e na Pega-sonho (Rua Martinico Prado, 372 – Higienópolis – SP – Tel.: (11) 3668-2107).
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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