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COLUNISTA
Alexandru Solomon
21/11/2010 - 12h00
Encontro
 
 

O relógio marcava oito horas. Se estava aferido ou não, pouco importava. Não seria por causa de alguns minutos para mais ou para menos, que a obrigação de informar deixaria de ser cumprida.

Esperou, impacientemente, que todos fossem embora. Precisava de tranqüilidade. Alguns minutos se passaram e fez-se a sua vontade. Aqueles minutos pareceram-lhe intermináveis, se bem que nenhum deles tivesse ostentado mais do que os sessenta segundos de praxe. Estava finalmente só. Correu até a gaveta e, debaixo de algumas bugigangas, estrategicamente colocadas, encontrou o retrato que o desconhecido lhe mandara.

O desconhecido, apenas um rosto. Avistara-o num shopping, num final de tarde chuvosa. Era freqüentadora assídua do único estabelecimento do gênero na cidade. O shopping, esse sucessor ilegítimo da praça e das caminhadas pelas ruas, cada vez mais inseguras, até naquele burgo. O encontro casual bastou para, em pouco tempo, o desconhecido tornar-se uma presença constante e torturadora nos seus sonhos. Depois, ah, numa cidade pequena tudo se descobre, especialmente quando se quer deixar uma pista... Foi assim. Ela olhou, ele sorriu, comodamente instalado junto com alguns amigos, em volta de uma mesa da praça de alimentação.

Por algum mistério, ele conseguira o endereço e alguns dias depois, lhe mandara uma foto junto com algumas palavras banais. Banais, mas que a incendiavam. Depois de decorar aquelas linhas, picou o papel em mil pedaços, conservando preciosamente a foto. Que escondeu com cuidado, apesar de nunca o marido mexer nas coisas dela, nem precisa dizer. O estranho não deixara nenhuma pista. Não havia remetente na carta que, sem passar pelo correio, fora parar debaixo da porta e, de lá, nas suas mãos. Atrevido ele. Ainda bem. Qual teria sido a astúcia empregada para que o envelope a alcançasse? Pouco importava.

Em momento algum, pensou nos seus. Aquilo era um assunto inteiramente dela, protegido pelas muralhas da sua fantasia. Nada tinha a ver com a estabilidade do lar. Era apenas um devaneio, uma viagem a uma Terra Proibida, sem a menor intenção de lá se deter a não ser na sua imaginação. Ninguém saberia disso. Seria apenas o segredo deles. E se ele fosse um cafajeste? E se por trás daquelas feições, vistas de relance, no retrato, estivesse escondido um qualquer e não o mensageiro do prazer absoluto? E por falar em prazer, que espécie de prazer a estaria aguardando? Seria a sensação furtiva de burlar convenções? Seria uma “traição”? A palavra a assustava. Ela jamais iria trair. Mas estava se preparando para isso, resmungava a voz de uma consciência que em vão tentara iludir. Não, repetia para si mesma. Seria apenas uma fuga. Ela saberia ser forte para evitar as armadilhas da carência. Nada iria mudar. A cidadela matrimonial não seria abalada. Tudo se passaria numa dimensão exterior, num mundo só dela, populado por desejos jamais confessados. Ela saberia ser senhora do impulso que assomava sorrateiramente.

Agora precisava se preparar para o encontro.

Ela, mulher na flor dos seus “entas”, estava se comportando feito colegial. O mais espantoso era ter conseguido tomar a decisão. Iria mergulhar. Estava decidida.

Atendera às instruções da carta e deixara um bilhete, com o que lhe fora pedido, debaixo de um banco numa pequena área verde, pomposamente chamada de parquinho. Era um banco ao pé de uma figueira. Jogou um pouco de terra em cima da missiva. Nem teve a coragem necessária para ficar e, escondida, ver quem iria apanhar o recado. Nem seria ele, com certeza. Na breve mensagem, conseguira após um esforço, um esforço enorme, não escrever tudo que estivera experimentando. Fez de sorte que, mesmo se o bilhete caísse em mãos estranhas, isso não a comprometesse. Um texto bem anódino, sem nada que deixasse transparecer a ansiedade. Empregara o método para negociar o resgate de um seqüestro, como tanto assistira na TV. A sua tranqüilidade fora seqüestrada. Qual seria o resgate exigido?

“Foi muito gentil em manifestar interesse pelo assunto. Caso queira, e isso me agradaria, telefone para xxx.xx.xx a fim de discutirmos o assunto. É urgente. Melhor horário entre nove e dez horas. Resposta aqui, antes do contato. Caso contrário, a chamada não será atendida.”

Parecia uma carta comercial. Faltava apenas o “atenciosamente”.

Funcionou, não sem antes ter experimentado um susto. No dia seguinte, passou algumas vezes pelo parquinho, sem nada encontrar. Passou uma noite angustiada. Com certeza o bilhete caíra em mãos estranhas. O intermediário se apoderara da mensagem. E daí? Nem estava assinado. Era apenas uma folha de papel com algumas palavras, sem nenhum tipo de efusão. Única testemunha, a sua impressora. Bem que ele poderia lhe responder mandando um bilhete como da primeira vez, sem complicar. Mais um dia se passou, até encontrar, no mesmo lugar, debaixo do mesmo banco, recoberto com folhas secas, um envelope pardo amarrotado, com um texto no código que ela inventara.

“Proposta interessante. Nosso departamento técnico aguarda maiores detalhes. Contataremos conforme instruídos.”

Sem assinatura, como a primeira mensagem. Inicialmente, sentiu uma vaga revolta diante da sua total submissão aos caprichos de um desconhecido. Precisava reconhecer: estava em polvorosa. Passeava com o dedo pela boca daquele retrato imaginando aqueles lábios acariciar os dela. O beijo seria terno? Fogoso? Arrebatador? Isso era uma loucura, mas, escondida dos olhares de todos, esse sonhar de olhos abertos virara um ritual.

Isso não podia estar acontecendo com ela.

Pois estava.

Começou a se vestir com ansiedade. Escolheu com cuidado, depois de muitas hesitações, um vestido vermelho. Aquele que, comprado logo depois do Natal, tinha o corte um pouco mais ousado e fazia aparecer as suas formas, sem ser vulgar. Pelo menos, era o que ela pensava. Imaginava as mãos que nunca tinha visto, muito menos sentido, fazendo deslizar o zíper, desnudando-lhe as costas. Arrepiou-se. Borrifou algumas gotas de perfume, arrependeu-se de ter colocado demais e jogou com raiva o frasco em cima da cama. Raiva, tudo bem. Mas não queria quebrar o frasquinho. Ficou contente pelo resto de bom senso que conseguira conservar. Por fim, calçou um par de sapatos de salto alto, a valorizar-lhe as pernas bem torneadas. Na última hora resolveu trocar a calcinha. Aquela era muito ousada. Um sorriso maroto vagou pelo seu semblante. Quem sabe ele iria gostar mais da primeira. Quem sabe... Como é que ela iria saber disso?

Mais uma vez a imagem daquela boca esmagando-lhe os lábios a fez estremecer. Engoliu em seco.

Olhou apavorada para o relógio, não poderia se atrasar. O tão desejado encontro estava se aproximando.

Dentro de alguns minutos, ele iria lhe telefonar... Talvez.

Crônica do livro “Mãos Outonais”, Ed. Totalidade. Disponível na Livraria Pega-sonho – rua Martinico Prado, n° 372 - São Paulo – SP - Fone: (11) 3668-2107.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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