As surpresas têm um péssimo hábito. Vêm sem aviso prévio. Decerto é um pecadilho perdoável, quando se trata das agradáveis. No entanto, as ruins, ao chegar sem prevenir, incomodam. E como! Imaginem a cena. O duque parte para as cruzadas, envergando sua armadura reluzente. Debaixo do braço, o elmo ornado com a logomarca do patrocinador. Do alto da torre, a esposa agita o lenço bordado com as armas em direção aos barões assinalados que se afastam céleres. Mal se assenta a poeira levantada pelos cavalos do séqüito do nobre e eis que um jovem pajem se aproxima, disposto a qualquer sacrifício para que a abandonada castelã encontre a paz, digamos, de espírito. Confuso, com as faces ardendo, ele mal consegue formular sua insensata pretensão. Finalmente balbucia o essencial e, cabisbaixo, aguarda uma resposta. A confissão canhestra do desejo desmedido o deixa aliviado, sua respiração se normaliza; seu coração sonhador parece caber novamente no peito – lugar tradicionalmente reservado ao nobre órgão – ao retomar um ritmo menos alucinado. A ousadia é logo objeto de reprimenda. ‘Menino maroto, o que está pensando? Com certeza, essa mania de ler às escondidas aqueles livros guardados sob sete chaves o leva a perder o respeito que me deve. Sabe que posso mandar que lhe cortem a língua, para que nunca mais possa pronunciar palavras que firam minha honra?’. Ah, essa duquesa! Insensível ao gesto, puramente altruísta do serviçal, proferiu a cruel repreensão, nada além disso. Destruidora de ilusões! Pior, a fiel dama de companhia, cuja ausência, por breves e fugazes instantes, possibilitara a declaração, está de volta. Com certeza, acabou de confirmar por e-mail as reservas em primeira classe dos fiéis a caminho da Terra Santa, a numeração dos cheques de viagem e, seguramente, certificou-se de que as milhas ducais estariam devidamente registradas. Ei-la que surge. Com ela, o silêncio se apossa dos aposentos. Reina até, apesar de tratar-se de um mero ducado. Não há surpresa, por enquanto, já que o guapo aspirante a cavaleiro, mesmo nos seus sonhos mais ousados, jamais teria imaginado que a encantadora duquesa – pode ser condessa, caro leitor, esse relato em nada ficaria prejudicado – iria de imediato ceder à desmedida audácia. Profundo conhecedor da sabedoria popular, o jovem cortesão rememorou o sempre atual, mesmo se ligeiramente modificado ditado: ‘ Conversa mole em pedra dura tanto torra, até que se chega ao final feliz’. A palavra impossível não faz parte do seu vocabulário. Sucedem-se minutos, pouco importa quantos, durante os quais o charme, o veneno e, por que não dizer, a audácia do jovem procuram despertar, no objeto da paixão, o embate, de desfecho imprevisível, entre o dever e a sensualidade. Paralisado pelo medo de que a ameaça do corte da língua se torne uma desagradável realidade, faz dos seus olhares suplicantes eloqüentes mensageiros. Obedecendo a um sinal imperioso, a dama de companhia se afasta resmungando: ‘Isso ainda vai dar minueto’. Poderia ter dito samba, irão me corrigir, mas assumi o compromisso de um relato fidedigno, e ela disse ‘minueto’. ‘Saída providencial’, murmura o infante. Ajoelhado, ele invoca o encanto que dele se apoderou desde o momento em que, pela primeira vez, pôde vislumbrar o tornozelo aristocrático apoiado no estribo da carruagem, naquela tarde chuvosa. Sim, para que o longo vestido não se arrastasse na lama, ela o suspendera, talvez em demasia. Fora um gesto natural, apenas uma tentativa de evitar que o lodo tisnasse a fímbria violácea do vestido ducal, mesmo porque, o casal se dirigia a uma discoteca medieval e, em hipótese alguma seria admissível que aos menestréis fosse dado comentar a menor falta de asseio. Se houve, no levantar do vestido, generoso e proposital exagero, impossível saber. Aquela visão ficara para sempre atormentando a mente jovem, deixando margem a toda sorte de pensamentos amalucados. Ouvira, calado, a penitência imposta pelo confessor e, ciente da gravidade do seu pecado de quase-voyeurismo, dobrara por conta própria o castigo. Em vão. Mesmo sabendo se tornar merecedor do eterno contato com as chamas do Inferno, o desejo nunca mais se afastara dele. Aos corredores úmidos do castelo coube o papel de testemunhas das lágrimas vertidas, dos suspiros exalados e do andar desprovido de ginga do imberbe sofredor. A duquesa – decididamente, é melhor que seja duquesa – por sua vez, mergulha num abismo de reflexão, ignorando a presença suspirosa, que, no frigir dos ovos, como costumava dizer o cozinheiro do castelo, – o escocês Mc Donald, especialista em patos, Donald, naturalmente – até que não desagradava. A linda cabeça ornada pela discreta coroa ducal, usada somente durante as manhãs, balança em sinal de reprovação. E não é só a cabeça. As melenas douradas acompanham o encantador movimento, deixando totalmente desarvorado o ardente mancebo. ‘Menino levado, com certeza’ – murmura inaudivelmente a duquesa, enquanto seu olhar se desgarra nos ricos detalhes da tapeçaria – ganha num bingo beneficente e desde então dependurada numa das parede da severa antecâmara. Um persistente ‘e por que não, desde que ninguém saiba?’ não lhe dá trégua. Se a contemplação da tapeçaria convida ao devaneio, a vista das espadas encimando o escudo, na parede oposta, obra de um famoso mestre, já falecido, recomenda prudência. Confidente de uma condessa, cujas terras recém-demarcadas flanqueavam parte do seu território, sabia que deixar um jovem pajem cobiçar a mulher alheia não era motivo para longas noites de insônia. Uma vez consumado o pecado... sim, uma vez consumado o pecado, o jovem teria de desaparecer. Uma gota de veneno do rubi oco seria suficiente. Fingindo total desprendimento, dirige-se para a mesa com tampo de carvalho e apanha a pasta de documentos pessoais do marido. Está tudo lá: as contas telefônicas, a declaração de impostos, o recibo da gabela, um exemplar da revista Caras e a cópia da passagem. A volta estava em aberto. O pajem continua ajoelhado. Não havia porque hesitar. – Esteja aqui de noite, depois que eu dispensar as criadas. – Senhora – o pajem prosternou-se. – Faltam-me palavras. – Espero que nada falte além das palavras. Só posso prometer-lhe suor e lágrimas – mencionar o sangue teria sido deselegante. Deixe-me o número do seu celular. Eu o chamarei. E agora, saia antes que peça aos lacaios que o atirem na masmorra do castelo, mas só depois de deixar o número, seu insolente. Com um gesto majestático, a delicada mão ducal é oferecida ao ósculo do cortesão. As horas parecem não querer seguir seu curso. Impaciente, a duquesa sacode repetidas vezes a ampulheta do quarto, na esperança de ver o tempo seguir seu vôo em vez de deixá-lo suspenso. Maldito horário de verão, procrastinador da escuridão! Procura distrair-se assistindo o noticiário da TV, pensando no que poderia estar fazendo o jovem audacioso. Para espanto da criadagem, declara não querer comer costela de javali, por detestar a dieta Atkins e atira a travessa em direção à dama de companhia, cujas insistências a aborrecem. Com um duplo salto carpado, a dama evita o constrangedor impacto. – Deixe uma garrafa daquele velho Borgonha e um sanduíche natural. Só isso. Melhor, dois sanduíches. Ah, com pão integral. – Certamente, Vossa Graça. – Pode deixar ao lado da mesinha do computador. Não precisarei mais dos seus préstimos. Não quero os músicos aqui. Mande-os ensaiar alguma música nova, Berenice, alguma coisa que fale à minha alma sofrida. Obediente, Berenice ajuda a duquesa a vestir-se para um sono reparador e, em seguida, retira-se. Se uma duquesa resolve desistir da dieta, não cabe a uma serviçal questionar a decisão, muito menos o número de calorias em jogo. A noite de lua cheia envolve o castelo. O canto dos grilos, vez por outra, é interrompido por uma coruja desafinada. Impaciente, a duquesa tecla o número, a partir do seu aparelho de ébano, presente de um paxá parceiro de farras do marido. Vem a surpresa desagradável, ao receber como resposta ‘o aparelho está fora da área de cobertura ou encontra-se desligado’. Isso contraria todos os planos. Uma segunda tentativa, bem-sucedida, traz de volta as cores ao rosto angelical. – O que está esperando? Em menos tempo do que levaria a aprovação de uma Medida Provisória, ouve-se um toque discreto na porta. Emocionada, ela sopra todas as velas, deixando apenas uma acesa (*). A porta, uma vez aberta, dá passagem ao galante gentil-homem. Com um sorriso ela o guia em direção ao leito. O resto da cena pareceu-lhe extraído da novela de TV a que acabara de assistir. Entre beijos e suspiros ela se livra da roupa e ajuda o impetuoso visitante a retirar a vistosa libré. A visão do cinto de castidade tem o dom de arrefecer os ímpetos. O toque frio do metal paralisa o fogoso amante. – Maldição! – Que feio! Não gosto de palavras blasfemas. – O que faremos? – Exerça sua criatividade. Sou toda sua, a menos desse detalhe metálico. – Preciso ver. Juntando o gesto à palavra, ele aproxima a vela acesa do corpo tão desejado. (*) N. E. - Portanto, ela soprou N - 1 velas. O autor comete aqui um dos seus raros deslises conceituais. – Não gosto desse lance de vela acesa. Sabe? Não gosto de brincar de Eros e Psique. – O duque parece não ter plena confiança na esposa, e a senhora sabia disso. Por obra de qual misterioso desígnio me ocultou a existência dessa terrível barreira? – Criança, a fortuna sorri aos audaciosos. É claro que o duque confia em mim, tanto é que esse cinto abre com o auxílio de um cartão inteligente. – E daí? – Daí, tolinho, o duque só comprou o cinto por causa da liquidação do Carrefour. Ele queria que todos os fidalgos fossem informados desse detalhe, por isso pediu ao gerente total discrição. Quer melhor garantia da loquacidade daquele plebeu? Como ficou com receio de perder o cartão, ele me disse onde iria deixá-lo. Está mais tranqüilo? Deve estar debaixo do oratório, se a diarista não o levou. Esses empregados hoje em dia... – E é esse mesmo o cartão? – É claro que sim. O duque tem horror de ter de apelar para a lei do consumidor, sabe o perigo que existe em comprar artigos em liquidação, e testou várias vezes esse cinto. Não comigo, pois queria me fazer uma surpresa. Ele o vem testando há quase seis meses. É natural, que assim procedesse, pois não sabia quando seria o dia ‘D’ da partida. Sem acreditar nessa reviravolta o pajem experimenta o cartão inteligente. Só poderia falhar se houvesse falta de crédito. Cupido, porém, encarregara-se de eliminar esse óbice. Os amantes tiveram uma noite inesquecível. O canto longínquo de um galo trouxe-os de volta à realidade. – Querido, você precisa ir. Vamos brindar a muitas outras noites felizes. Traga o que resta do vinho e os copos. – Não é o galo que está cantando, é o rouxinol – tentou ainda o infatigável efebo, deixando o amoroso prevalecer sobre o ornitólogo. – Amanhã será outro dia, querido. Li isso em algum lugar. Enquanto, ébrio de felicidade, o pajem executa as ordens, a duquesa apanha um certo rubi oco, hesita alguns segundos e com um sorriso impossível de decifrar, despeja-lhe o conteúdo no chão, poupando o parceiro daquela inconfessável noitada de uma surpresa, seguramente desagradável. Crônica do livro “Sessão da Tarde”, Ed. Edicon. Disponível na Livraria Pega-sonho – rua Martinico Prado, n° 372 - São Paulo – Fone: (11) 3668-2107.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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