Aquele ambiente tinha um quê todo especial. Gostava daquela fria arrumação. As gravuras, ah, as gravuras! Um presente dela. “Aposto que essas ressaltarão a seriedade do consultório, experimente só trocar as horrorosas” Agora, ficava muito contente, sempre que as olhava. A mesa com tampo de cristal. Um senhor tampo. O computador, a estante cheia de livros. Resolveu sentar na poltrona de couro, fofa e acolhedora, que, praticamente, a engoliu. Ele parecia tão distante, do outro lado da mesa. - Não prefere o sofá, Solange? - Prefiro ficar na poltrona. Olho para você - ele sorriu. - Tentei ligar avisando que talvez pudesse me atrasar. Até liguei para o seu celular, mas deu caixa. Nem deixei recado. No fim, corri feito uma louca e cá estou. - Que bobagem. Sabe que, se estou ocupado, o celular permanece desligado, mas se tivesse deixado recado... - Eu sei, eu sei. - Claro que sabe. Depois de tanto tempo... - Mais de sete anos, melhor dizendo, estamos completando oito anos hoje... O tempo passa... - É mesmo? - É. Não me diga que não sabe. Você tão metódico, cheio de fichas, disquetes, pen drives e tudo mais. - Talvez não tenha me esquecido. O importante é você, Solange, perceber que existem valores duráveis que se situam além dos devaneios. São, de certa forma, nossas âncoras. Já falamos sobre isso, repetidas vezes. Talvez você prefira criar uma realidade artificial... - O problema você sabe qual é, Bruno. Aquela postura: sempre afastado, distante, aparentemente alheio às minhas tempestades internas; parece que eu não represento mais nada. Isso me dá uma tremenda insegurança. Fico deprimida, procuro jogar a culpa em alguém, e, como sabe, acabo culpando a mim mesma. - Já tocou várias vezes no assunto, mas talvez não tenha transmitido com precisão esse penar – vamos chamá-lo assim? - Falamos. Disse-me que a melhor coisa era tomar Prozac. Talvez ajude, mas quero vencer sozinha, sem muletas químicas. Não vejo motivo para apelar... E não gostei do seu sorriso, quando falei em “tempestades internas”. - Acho que a literatura é outro departamento, mas, se quer falar nesses termos, tudo bem. Iremos integrar a expressão nos nossos códigos de comunicação. Quanto ao Prozac, se conseguir superar as intempéries, sem medicamento, não vejo problema algum. O conselho até que faz sentido. Sabe que sim. - De jeito nenhum. Não faz o menor sentido. E agora, preciso lhe contar algo. - Estamos aqui para isso, Solange. - Bem, é embaraçoso e não sei se terei tempo. - Terá. - Não sei como começar. - Não se preocupe. Estou aqui para ouvir. - Talvez não vá gostar. - Não costumo... - Eu sei, Bruno. Não costuma opinar. Posso começar? - Sim. - Vai fazer anotações? - Se achar que devo, farei. - Já lhe disse que nos últimos meses, praticamente, nossa vida conjugal passou a se estreitar - não sei se o termo correto seria esse. Evita-me. Talvez nem seja verdade. Pode ser que eu esteja me tornando insuportável. Minha maneira de ver as coisas, o meu desejo de perfeição, os sonhos de menina. - Usou a palavra “evitar”. Seria a mais adequada? Quando a formulou, pensou em quê? - Desculpe, eu me expressei mal. Estou nervosa. Na verdade, eu o evito. Sinto-me culpada. - Culpada? - Olha, por favor, não me interrompa. - Livrou-se dos sapatos e sentou em cima das pernas dobradas. A saia subiu. Ela lutou um pouco, puxando-a para baixo. Desistiu. - Prossiga. - De certo modo, está se passando algo esquisito. Fantasias mil me ocorrem e penso até, pensei melhor em até... - Pensou em quê? Isso pode ser importante. - De alguma forma, viver uma experiência diferente. Não sei como explicar. Fico constrangida - ela parou e contemplou a estante cheia de livros. Gostaria de fumar um cigarro. - Eu não fumo e sabe que não gosto que fumem no consultório, mas se insiste, o que posso fazer. - Tá bem, desisto. Bruno, o que lhe parece tudo isso? - Por enquanto, não me disse nada. - É verdade, mas gostaria que entendesse. Sou um ser humano, como todo ser humano, sou falível. Então, essas fantasias me perseguem. - Continue. Qual é a fantasia? - De alguma forma, quero castigá-lo, entende? - Quer castigar. Entendi. Já escolheu o castigo? - Pior. Já sei com quem. - Está me dizendo... - Por favor, não me interrompa. Creio que a melhor solução para nós seria eu ter uma aventura, com uma pessoa discreta, de maneira que eu seja sempre dona da situação. Seria uma aventura breve, ao fim da qual, eu nem me lembraria dele e, naturalmente, ele jamais saberia quem sou. Não saberia nada a respeito da família - já lhe disse muitas vezes que a família representa o degrau máximo na minha escada de valores. Então, Bruno, penso ter encontrado a pessoa. O mais engraçado é que ele nem suspeita do papel que em breve irá desempenhar. - Isso a fará se sentir melhor, por realizar uma fantasia, ou talvez depois disso passará a se detestar? - Eu já me odeio hoje. Odiar mais seria impossível. Procurei afugentar esse plano e, quanto mais me esforço para descartá-lo, com mais intensidade ele finca raízes na minha mente. - Está decidida, em suma. - Estou. - A orientação que sempre dou é que nada há de mais importante do que fazer aquilo que se tem realmente vontade. - Mas será que é isso que eu quero? Como posso ter certeza? - Logo saberá. Se é esse seu desejo maior... - Na verdade... Na verdade, não sei. Sabe o que eu gostaria mesmo? Por acaso tem algum palpite? - Assim que me disser, Solange. - O que eu gostaria, mas gostaria demais, Bruno, seria eu ficar no sofá. Você se aproximaria de mim. Eu fingiria que nada percebi. Aí, Bruno, você me abraçaria com carinho. Só de pensar, me derreto toda. Aproximaria seu rosto do meu... - Há uma marca do Witz freudiano no que acaba de dizer. Só me resta indagar qual o real papel que me atribui. Continue. - Enquanto você me ajudava a tirar minha roupa, arrancaria essa camisa. Já lhe disse que detesto camisas listradas. Odeio. Abomino. - Hmmm. - Daí, quando estivesse com o rosto colado no meu, depois de me beijar na boca e, depois de termos feito amor, sabe o que lhe diria, além de pedir mais? - Como vou saber, nunca pára de me surpreender. - Que não existe aventura alguma em perspectiva, que você é adorável, mas que odeio você. - Essa não! Um segundo, preciso anotar. - Odeio, porque logo notei que havia esquecido a data de nosso aniversário de casamento, mas adorei seu desempenho no papel de psicanalista, senhor arquiteto. A propósito, reservei nossa mesa de sempre no restaurante. - Querida, se sua fantasia fosse apanhar, nem imagina quão perto esteve de uma sova. E quanto ao aniversário de casamento... - Eu sei, Bruno, recebi as flores no escritório. Se as mandou, foi movido por um sentimento de culpa, não por lembrar. Odeio você, querido.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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