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COLUNISTA
Alexandru Solomon
18/07/2010 - 11h03
A cigarra e a formiga - duas versões
 
 
Conversa (des)afinada

“Já li, dia desses, algo parecido, ambientado em outra latitude. Plágio ou catastrofismo?”

Todos conhecem a antiga fábula da cigarra e da formiga. Para os (muito) poucos que porventura a ignorem, lá vai:

Era uma vez uma formiga que trabalhava de sol a sol. Diligentemente juntava grãos, prevendo a chegada do inverno. Previdente, construiu uma casinha. Enquanto isso, a cigarra cantava despreocupadamente, sem pensar no futuro.

Chegou o inverno com o frio, nada de mantimentos – uma fina camada de neve revestia a natureza com seu manto. Desesperada, a cigarra foi procurar o auxílio da formiga.

– Mas o que fazias durante o verão? Ah, cantavas? Pois agora podes dançar.

Moral da história: Seja operoso, seja previdente. A bonança não dura sempre.

A versão moderna seria mais ou menos assim:

Era uma vez uma formiga que trabalhava de sol a sol. Diligentemente juntava grãos, prevendo a chegada do inverno. Previdente, construiu uma casinha. Enquanto isso, a cigarra cantava despreocupadamente, sem pensar no futuro. Nenhuma mudança até aqui, certo? Paciência, a história continua.

Para se sustentar a cigarra beneficiava-se de um programa de inclusão social. Com os recursos do Bolsa-aquilo e aquilo outro, conseguia seu sustento.

Eis que chegou o inverno com o frio cortante, nada de mantimentos – uma fina camada de neve revestia a natureza com seu manto diáfano. (É sempre bom colocar adjetivos de impacto como esse ‘diáfano’, dá um toque extra de credibilidade). Desesperada, a cigarra foi procurar o auxílio da formiga, já que o programa de inclusão social não lhe permitia sobreviver. Recebeu a mesma resposta: o convite a dançar. Dançou, como se diz.

No entanto, a cigarra, que não era uma cigarra qualquer, resolveu reagir. Procurou o Sindicato das cigarras e expôs sua desdita.

Imediatamente, organizou-se uma passeata em frente à casa da formiga. O poder de mobilização do sindicato era nada desprezível. Milhares de cigarras bolivarianas e de simpatizantes da causa, com carro de som, bandeiras (vermelhas, naturalmente) e farta distribuição de panfletos marcharam, entupindo as principais artérias de Formigópolis.

Ato contínuo as principais redes de TV deram cobertura ao movimento. O líder do movimento subiu em cima do carro de som e bradou:

– Companheiras cigarras, estamos presenciando os efeitos nefastos de uma atroz desigualdade. Os culpados (ele costumava alimentar-se de esses), para nomear só alguns, são o presidente anterior que nos legou uma herança maldita, e os Estados Unido, com sua vocação imperialista. Vamos lutar como nunca antes nesse país, para defender os direitos da cumpanheira cigarra lesada por uma integrante da zelite.

A cigarra foi convidada no talk-show de Jô Soares e expôs seu drama.

– Isso não pode durar, exclamaram, em uníssono entrevistador e entrevistada.

Um famoso cantor, aderiu à causa, e fez um ‘lifting’ num sucesso antigo;

“Apesar de você, amanhã há de ser, outro dia”.

“Vou comer e dançar, vou poder me esbaldar, quem diria?”

A Receita Federal permitiu que alguns dados da declaração de rendimentos da formiga vazassem. E, mesmo sem haver nenhuma irregularidade, resolveu aplicar uma multa de 18.367,4 grãos de trigo na infeliz formiga, acusada de sonegação. Sem recursos para pagar, a formiga teve de hipotecar sua casa para fazer frente ao compromisso.

Constituiu-se um Comitê de Luta contra a Desigualdade entre Insetos.(CLDI). Insuflado pelo princípio do “o que e teu é meu e o que é meu continua meu”, o CLDI realizou algumas escutas telefônicas, com o auxílio do delegado Grampógenes, que permitiram identificar uma completa relação dos amigos da formiga, mas mesmo sem haver nenhuma conversa que comprometesse a lisura dos procedimentos, os noticiários sensacionalistas dedicaram minutos e mais minutos, em horário nobre, para comentar a vida sentimental da investigada. Soube-se assim que ela mantivera durante meses um relacionamento amoroso com um formigão excluído do clube Patas Traseiras (PT), afastado do Partido Sem Dores Básicas (PSDB) por desvio de comportamento.

Bastou isso para que se erguesse um clamor contra: o governo anterior, os Estado Unidos e, em menor proporção contra a União Européia. Num país rico como nossa Formiglândia, é inadmissível que uma cigarra passe fome!

O trabalho de descontrução da formiga precisava de verbas. Foram obtidas a partir de um tal ‘semestrão’, cuja existência foi sempre negada, logo, não existiu.

Motivada pela crescente onda de indignação, a municipalidade identificou uma irregularidade na edícula na qual a formiga mantinha suas reservas. Além da multa foi imposta a demolição da construção irregular. Levantamentos posteriores identificaram o não pagamento de IPI. De nada adiantou argumentar com a isenção de IPI para formigas, foi aplicada multa em valor de 200% sobre os valores atrasados – corrigidos monetariamente, além de uma CSLL sobre um lucro inexistente, porém substancial. Segundo o auditor Kofinsky: “Imposto é para ser pago, não para ser contestado”.

A formiga foi considerada detentora de uma grande fortuna, após o exame de suas declarações de bens antes das multas, e, de imediato, foi aplicado o ISF – imposto sobre fortunas, na sua alíquota máxima.

O drama continuou.

Apelos desesperados dirigidos a quem quisesse ouvir – e eram poucos - não surtiram efeito. A formiga decidiu iniciar uma greve da fome – mesmo porque nada lhe restara para comer.

- Isso não passa de provocação – sentenciou a autoridade máxima. Imagine se todos os bandidos resolverem fazer igual!

A residência da formiga amanheceu coberta de pichações. Teve que pagar multa por tê-las permitido. Após a invasão por cigarras sem-teto, só restou à formiga refugiar-se num albergue comunitário. Antes de sucumbir à desnutrição, recebeu um conselho: “Relaxe e goze!”. Não houve tempo para a segunda parte, e ela top-top.

Um jornal resolveu, tardiamente, sair em defesa da infeliz representante dos himenópteros operosos, porém teve de calar-se e assim permanecer por centenas de dias, sob a acusação de fazer parte da Imprensa golpista.

Formiglândia vivia a febre de eleições para mandatário máximo. Ninguém ia dar bola para uma formiga congelada.

A candidata favorita é uma cigarra ventríloqua usualmente vestida de vermelho... Seu comitê eleitoral escalou para a coordenação de marketing... a cigarra.

Moral da fábula: você já sabe em quem vai votar em outubro?


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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