Conversa (des)afinada
Nem chegamos às semi, e a Copa 2010 terminou; pelo menos para nós. Ufa! Sobraram vuvuzelas, um estoque de camisetas auriverdes, bandeiras, apitos e outros artigos perfeitamente aproveitáveis em outras oportunidades. A pátria de chuteiras se refaz, aos poucos, do trauma, até certo ponto previsível. Comentários de sobra até 2014, mas é forçoso convir que o mundo não acabou, salvo informação que ainda não chegou até nós. Delegamos a um grupo de atletas o resgate de glórias passadas e vejam só o que fizeram! Envergonhados, os torcedores lambem silenciosamente a ferida aberta. Nem tanto, por favor. O cantor Jacques Brel compôs uma canção na qual aparece essa ’verdade’ universal: "À la minceur dês épluchures, on voit la gloire des nations", em tradução livre: "pela espessura das cascas de batata se mede a glória das nações". Não havia nenhuma mensagem ecologicamente correta contra o desperdício e sim uma triste ironia. A glória futebolística, se faz um bem indescritível, não é tudo. De uma forma bastante insólita, tentamos fazer de um grupo de profissionais do ludopédio o instrumento de nossa afirmação. E nossa glória foi-se pelo ralo, por ter sido entregue nas mãos – perdão, pés - de um grupo esforçado, porém limitado. Não somos os únicos. A mania é universal. Da mesma forma que por aqui se lamenta o fiasco - se é que uma derrota futebolística possa ser chamada de fiasco - com tantas coisas mais sérias a nos atormentar, constatamos que não temos o privilégio da originalidade. Sarkozy em pessoa resolveu investigar o que aconteceu com ’les Bleus’ - que já ganharam o apelido de "les Bluffs", na Itália se deplora a falta do "verdadeiro futebol italiano" e por aí vai. O que será o verdadeiro futebol de um país? Onde foi parar o verdadeiro futebol brasileiro? Exclamam viúvas inconsoláveis. Esse Dunga, retrucam outros, com tantos volantes. Onde já se viu? Convocação absurda, de um treinador que nada entende - bradam os mais exaltados. Dessa maneira, haverá quem duvide que Deus é brasileiro. Perdemos. É triste, mas daí virarmos desconsoladas carpideiras há uma boa dose de exagero que é melhor banir. Poderemos encarar a História de cabeça erguida. Não fomos parar no terceiro subsolo. Só falta alguém inventar a ’herança maldita de Dunga’. Longe disso. Com o risco de levar uma vaia estrepitosa, vamos olhar para trás. Em 1958, a convocação não foi uma unanimidade. Depois da conquista, ninguém mais reclamou da não convocação de Luizinho, o ’pequeno polegar’. Poucos terão a objetividade de lembrar que nas semi, massacramos a França sim, mas eles jogaram com 10 porque o Jonquet foi aleijado por um dos nossos - pouco importa saber quem - e não havia substituição. Certo, Clotilde? Em 1962 abatemos a Fúria, mas alguém se lembra da anulação de um gol legítimo deles e da ’esperteza’ de Nilton Santos, que após cometer um pênalti em Gento, deu um passinho para a frente, enganando o juiz? Por acaso, alguém se dispõe a recordar que Garrincha fora expulso na semi, consequentemente não poderia ter disputado a final, não houvesse um providencial ’sequestro’ do árbitro. Em 1970, jogando contra o Uruguai, Pelé não deveria ter sido expulso, após uma cotovelada em Matosas, igualzinha àquela que motivou a expulsão do Leonardo em 1994? Claro que não! O juiz até deu falta a nosso favor! Isso quer dizer que nossas vitórias não valeram? Claro que valeram, além de demonstrar que se o futebol se ganha ’nos detalhes’, algumas vezes, os detalhes também estiveram a nosso favor de maneira inconteste. Fala-se da seleção de 1982 como a grande injustiçada. Detalhe: no jogo com a União Soviética o juiz não viu um pênalti escandaloso de Luizinho. Depois, perdemos da Itália, mas será que se o técnico tivesse convocado Leão, ele não teria agarrado ao menos uma das três bolas que arrancaram lágrimas do garotinho, na foto premiada do Jornal da tarde? Ah, essas convocações. As vozes chorosas que lamentam a pubalgia de Kaká - o que diabo é essa pubalgia? Com pubalgia e tudo a bola que ele chutou só não entrou porque o goleiro holandês fez o que os holandeses esperavam dele: defendeu - se recordam da Copa de 1986, quando Zico, meio baleado, saiu correndo do banco de reservas para chutar mal um pênalti contra a França. Depois, é fácil criticar o grande Telê - tão malhado pelo Jô Soares, perdão, Zé da galera - por não ter colocado pontas em 82, ou ter barrado Renato Gaúcho que se atrasara num treino em 86. Dessa vez, jogamos sem Pato, sem Ganso - os canarinhos sozinhos não deram conta do recado. Gostamos de sofrer? Claro. Dirigimos olhares saudosos para nossas conquistas passadas e esquecemos pequenos detalhes que poderiam ter invertido alguns resultados, como o gol anulado da Bélgica em 2002 ou o satélite artificial lançado por Baggio em 1994. Vamos ignorar os jogos restantes e vamos pensar na Copa de 2014, com a inevitável bagunça administrativa que a antecederá. Se algo der errado (tomara que não) poderemos nos insurgir contra as ’forças ocultas’ personificadas por perversos Mr. Ellis - árbitro do jogo Hungria 4 x Brasil 2, que provavelmente nada fez de tão errado para merecer os insultos dos nossos gloriosos locutores de uma época sem TV, câmera super-lenta etc. Seremos HEXA ou "hexagerados", dependerá dos caprichos dos deuses do futebol e do superfaturamento. Até lá, inspirados no outro Rei - somos uma república repleta de reis - vamos entoar o habitual: "Daqui pra frente, tudo vai ser diferente". Sugestões não faltarão!
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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