A chave girou lentamente na fechadura e, ao abrir a porta, teve pela frente o cenário familiar do pequeno apartamento. Como no dia seguinte teria a visita da faxineira, nem reparou a desordem da sala. Jantaria em casa mesmo, já que sair a essa hora seria loucura e, delícia suprema, deixaria toda a bagunça para a Dona Jurema. Estava muito cansada. Trabalhar depois do expediente era um verdadeiro castigo. Que dia. Tudo atrasado, por mérito exclusivo da turma de criação. Para eles horário era mero detalhe. Os outros que se virassem. Como de hábito, os gênios terminavam na undécima hora e depois brindavam os demais com um olhar cândido. O olhar que embutia o tal conceito de parceria e o seu corolário “Nós acertamos quando dá tudo certo, você errou, quando algo não sai a contento”. Tudo a ver com uma prova de revezamento. O bastão sendo passado e, qualquer que fosse o atraso, caberia ao último recuperar o tempo perdido. O que ainda não fora conseguido pelos gênios, era incluir um providencial dia extra entre a véspera e o dia D. Esse conceito de trabalho de equipe a deixava furiosa. Era uma fúria passageira, diga-se de passagem, que se desmanchava uma vez tudo concluído. Depois sobrava o misto de cansaço e satisfação, no qual, quase sempre, prevalecia o cansaço. O olhar varreu a sala, sem entender muito bem por qual motivo “ele” não se dignara a dar um sinal de vida. Que dorminhoco. A falta de alguns minutos para a meia-noite, não poderia ser aceita como justificativa. Indesculpável, no mínimo! Colocou a pasta com papéis em cima da escrivaninha. A caminho do quarto, foi se livrando do casaco do tailleur. A seguir, dois chutes mandaram para bem longe os torturadores sapatos de salto alto. Jogou o molho de chaves em cima da cama. Precisava, e já, tomar um bom banho de chuveiro. O jantar ficaria para depois. Amontoou o resto da roupa num strip-tease, que teria atraído a vaia de uma platéia hipotética, quanto à velocidade, seguramente não quanto aos dotes físicos da artista. Regulou o jato do chuveiro e ficou se deliciando com o impacto das gotículas a lhe acariciar o corpo. O cansaço estava cedendo lugar a uma incrível sensação de bem-estar. Constatou, tarde demais, que se esquecera de colocar a touca. O cabelo molhado já estava grudado à pele. Azar. Continuou saboreando o contato da água. Derramou generosamente sobre si o conteúdo de um frasco de gel para chuveiro, troféu de uma breve viagem. Lembrou-se do hotel e de todas as suas estrelas. Pelo menos uma delas, devida aos cosméticos do banheiro, lhe veio à mente, enquanto uma agradável dormência a dominava. O boxe foi invadido rapidamente pelo agradável perfume. Permaneceu mais algum tempo imóvel, espalhando com volúpia a espuma que o jato de água já estava levando. Girou a torneira e se envolveu num roupão felpudo. Olhou de soslaio para o espelho embaçado. Aliás, o banheiro estava invadido por um autêntico fog londrino. Com o auxílio de uma toalha, improvisou rapidamente um turbante e tratou de sair do banheiro transformado em sauna. Ao desabar em cima da cama, esbarrou nele. Com alguma má vontade um espaço diminuto lhe foi cedido na cama enorme. – Mas que coisa, quanta indiferença. Que bela maneira de cumprimentar. Poderia olhar para mim, ao menos. – ... – Escute, estamos juntos há mais de seis anos, não é possível ficar me olhando com esse ar de enfado. O que será daqui a mais dois anos? – ... – Não estou lhe pedindo nenhum tipo de manifestação alucinada, mas há de concordar comigo quando lhe disser que está me desapontando. Nesses anos todos você sempre foi carinhoso, meu companheiro ideal, isso devo reconhecer. Sempre tive em você um ouvinte atento. Quando precisei de uma gentileza, lá estava você. Por isso não sei como interpretar a sua indiferença de hoje. Ouviu perfeitamente, quando entrei, e preferiu ficar estatelado na cama. Nunca faria isso em seu lugar. Pode ser que não lhe tenha ocorrido, mas também tenho as minhas carências. Não acha possível isso? – ... – Não mede esforços para fazer prevalecer a sua vontade, até nas coisas mais banais. Quando saímos para passear, você é quem escolhe os itinerários. A minha vontade parece ter peso desprezível. Nunca cedeu, uma única vez que fosse, nunca fez nenhum tipo de concessão. Está certo, seu olhar me desarma. Quando me olha como agora, os meus argumentos perdem toda a força, mas, não é justo abusar dessa fraqueza. Tive um dia de cão, entende isso? Eu vi que você não comeu, mas aposto que não foi para me fazer companhia agora, deve ter se perdido em alguma meditação e esqueceu, simplesmente. Verdade? É evidente que está se acomodando. Não digo que esteja havendo um desgaste na nossa relação, só que acredito, sinceramente, que, ultimamente, fui preterida. Nem vou dar muito destaque ao fato de tê-lo visto correndo atrás de Jurema. Quando os vi, ela ficou sem jeito, eu fiquei com muita raiva, mas muita raiva mesmo e, de sua parte nada, nem sombra de constrangimento. A que ponto chegamos! Pensa que tudo lhe é devido? Ficar dando essa de conquistador barato foi uma das suas atitudes mais desabonadoras. Está me ouvindo ou adormeceu? EEEEEIIII! – ... – Bem, acho melhor comermos alguma coisa. Depois discutiremos. Vamos, seu preguiçoso, já que esperou por mim sem comer. Mas o que há com você? Vamos. Sabe que, apesar de tudo, sou a perfeita Amélia. Alguma vez guardei rancor? Venha logo, meu fofo. Não quer? Não está se sentindo bem? Ai, não me diga que está se sentindo mal. Comigo esse truque não funciona... Está bem... Parece que meu dia de cão só será completo depois de falar com o veterinário. Azar o seu. Pensei que detestasse injeções. Sem rosnar, por favor. – ... Crônica do livro Mãos Outonais (Ed. Totalidade) – 2° Lugar – Prêmio para livros de contos Academia Municipalista de letras de M.G. Disponível na Livraria Pega Sonho – rua Martinico Prado, n° 372 - São Paulo – Fone: (11) 3668-21.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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