Conversa (des)afinada
Abandonando a sofisticação, as letras gregas e as derivadas parciais, chegamos a uma situação estranha: se antes a Economia parecia complicada, ao retirar a camada matemática, ela continua igualmente desafiadora. O que a torna aparentemente inacessível são os contínuos desmentidos àquilo que parecia verdade até a próxima esternutação, digo, espirro. Atravessamos uma crise, cujos reflexos sobre nossa economia ainda não estão claros e por isso mesmo seria bobagem querer definir. Os analistas, segundo uma definição maldosa dividem-se em duas categorias: aqueles que não sabem e aqueles que não sabem que não sabem. A crueldade pára por aqui. E não por falta de exemplos. Temos as profecias sem risco, do tipo: Um dia há de chover. Vindo de um Nouriel Roubini, depois de realizada, confere ao autor uma aura de infalibilidade até o primeiro tropeço. Para evitar esse gênero de embaraço, os entendidos recomendam expressões de clareza discutível : “O ambiente macroeconômico se mantém indefinido”, “tendências conflitantes tornam a recuperação problemática” ou enfim “mantidas as atuais condições justifica-se um otimismo moderado”. Há também as “bolas fora”: No auge da crise a equipe do respeitado Morgan Stanley previu uma queda de 4,65% do PIB brasileiro em 2009. Não foi 4,6 ou 4,7. É possível até que diante de um número do tipo 4,648632%, por algum resquício de respeito aos algarismos significativos tenha sobrado apenas 4,65% para o anedotário. Aquele modelo, levando em consideração uma infinidade de variáveis: o peso da economia informal, a variação do poder de compra em Jericoacoara, a matriz de Leontieff da Tailândia adaptada á realidade brasileira etc. - cuspiu um número rigorosamente errado. Razão sobrava a Keynes quando afirmava ser preferível estar vagamente certo do que rigorosamente errado. No capítulo das “bolas fora” merece destaque nosso ministro da Fazenda Guido Mantega. Ele pertence à categoria especial de vaticinador - torcedor. Achando, possivelmente, que suas profecias eram autorrealizáveis, produziu incansavelmente números que a realidade com incrível malevolência se encarregou de desmentir sistematicamente. Chamar Sua Excelência de Cassandra ao contrário talvez não fosse adequado. Cassandra acertava tudo, mas ninguém acreditava, ao passo que Sua Excelência raramente acerta, mas isso não faz a menor diferença. Ao fim e ao cabo, nosso PIB de 2009 encolheu 0,2% - até nova revisão - e, como no filme Nunca aos domingos, foram todos para a praia. Durante essa tempestade, tsunami ou marolinha - dependendo da definição que cada um desses termos passará a ter nos estudos futuros de Macroeconomia, ao substituir com vantagem, por sua maior plasticidade conceitos áridos tais como depressão ou recessão não faltaram explicações para o relativamente bom desempenho de nossa economia. Além de se enaltecer as ações providenciais do NOSSOTIMONEIRO, o incentivo ao mercado interno, as injeções de crédito - não que outros países não tenham manuseado a seringa e aplicado soro na veia, uma explicação merece ser comentada, para concluir esse texto enfadonho. Há uma quase-unanimidade para explicar que nossa sorte foi o nível das nossas reservas internacionais. Efetivamente, se no ano 1 d.L. o nível de nossas reservas era inferior a 40 gigadólares (bilhões para ficar na mesmice), eis que no ano VII d.L. oscilou em torno de 200 gigadólares, e atualmente estão em algo bem próximo a 240 bi. Não há dúvida possível quanto ao mérito desse escudo, já que em outras situações, a falta dele deu no que deu. Parte das reservas se deveu aos superávits da balança comercial. Para a outra parte, talvez seja necessária um pouco de irreverência. Existe o mecanismo do chamado carry-trade, que consiste em tomar emprestado num país que pratique baixas taxas de juros e aplicar os recursos num país onde a taxa de juros é elevada e pelo princípio universalmente aceito do “é melhor ser rico e com saúde do que pobre e doente”, apurar lucro. Aí intervém a irreverência, pela qual o autor pede desculpas. Para conseguir um nível alto de reservas - se é esse o adequado, se deve ser metade ou o dobro é uma questão a ser debatida - praticamos o carry-trade português que consiste em assumir uma dívida a taxas vizinhas à taxa chilique, arranjar reais, comprar dólares e aplicá-los no mercado de T-bills norte-americano, auferindo uma remuneração bem inferior. A pergunta lancinante é saber até onde devam crescer essas reservas, já que em paralelo ao acúmulo desse poderoso anteparo contra crises, aumenta a dívida interna. Há, e não são poucos aqueles que sustentam que quanto maiores as reservas, maior a blindagem da economia, algo como colocar um pára-quedas numa motocicleta para aumentar-lhe a segurança.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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