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COLUNISTA
Rui Grilo
10/03/2010 - 05h26
Os fuzis da Senhora Carrar
 
 

Na época da ditadura assisti essa peça de Bertold Brecht, um dos maiores dramaturgos do século XX. Já não me lembro dela com todos os detalhes mas os acontecimentos e a situação que estamos vivendo me fez lembrar dela com muita força. Não consigo dormir e me ponho a pensar na situação.

Na Guerra Civil Espanhola, a Sra. Carrar já havia perdido o marido que se engajara do lado dos republicanos contra Franco e os monarquistas. Com medo que os filhos tomassem o mesmo caminho, ela esconde os fuzis como uma forma de impedi-los de ir para a guerra. Enquanto assa o pão, recebe a visita de um irmão que lhe conta os horrores da guerra e da necessidade de mais armas e mais soldados para evitar o pior. Durante o debate, em que ela defende a neutralidade perante os horrores da guerra e o irmão defende a necessidade de luta para que o pior não aconteça, recebe o corpo do filho que foi assassinado enquanto pescava. Então, ela percebe a impossibilidade da neutralidade e da necessidade de analisar a situação e tomar partido. E de quanto isso é difícil devido aos riscos e conseqüências.

Essa peça é uma metáfora sobre a neutralidade da França e dos vizinhos da Espanha. A Guerra Civil Espanhola foi um grande laboratório para os nazistas medirem as forças que empregariam logo a seguir. Franco foi auxiliado por Hitler e Mussolini que testaram suas armas. Tendo vencido na Espanha, o próximo alvo foi a França e os países vizinhos. E o nazismo somente foi vencido quando houve a união de muitos países, inclusive o Brasil e os Estados Unidos. Se não tivesse havido essa união, a história poderia ter sido outra.

No entanto, ainda hoje, com medo de perder o emprego, de enfrentar os poderosos e de comprometer o sustento dos filhos, muitos, como a Sra. Carrar, ficam com medo de sair às ruas e denunciar a opressão, os desmandos e o mau uso do dinheiro que nos é tirado para sustentar a máquina pública. Com essa atitude, perpetuam situações de injustiça, de opressão, de corrupção e de falta de transparência.

Essa história me faz lembrar também a história de Salomão em que duas mulheres disputam a posse do mesmo filho. Salomão, então, propõe partir a criança e dar a metade para cada uma. Para manter a vida do filho, uma delas abre a mão de sua posse. Dessa maneira, Salomão descobre a verdadeira mãe e lhe entrega o filho. Para salvar a vida deles temos que arriscar.

Acho que a velhice nos aproxima da juventude na busca da liberdade. Na juventude, a busca da liberdade e o enfrentamento dos perigos se dá pela busca de autoafirmação e de negar o velho, o antigo e propor um novo mundo.

Na velhice, já fizemos tudo que conseguimos e não há muito tempo e força para realizar muita coisa. O corpo, já velho e cansado vai se tornando um peso, decompondo-se aos poucos. Não estamos mais preocupados em vencer mas que nossos filhos e netos tenham um mundo menos duro e mais feliz que o nosso. Não temos mais nada a perder e isso nos dá mais liberdade. Essa luta é que dá sentido para a vida que nos resta. Os filhos já estão criados, já ganham seu próprio sustento. Nós já não temos mais medo de perder o emprego e o que recebemos da aposentadoria vai dando para tocar o pouco que nos resta da vida. O que nos causa medo é a perda da saúde e dos movimentos, prendendo-nos na cama e tornando-nos dependentes de quem nos cerca.

Por isso, precisamos de serviços de saúde nos quais poderemos confiar nossos filhos, familiares e nós mesmos.


Nota do Editor: Rui Alves Grilo é professor da rede pública de ensino desde 1971. Assessor e militante de Educação Popular.
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