Na época da ditadura assisti essa peça de Bertold Brecht, um dos maiores dramaturgos do século XX. Já não me lembro dela com todos os detalhes mas os acontecimentos e a situação que estamos vivendo me fez lembrar dela com muita força. Não consigo dormir e me ponho a pensar na situação. Na Guerra Civil Espanhola, a Sra. Carrar já havia perdido o marido que se engajara do lado dos republicanos contra Franco e os monarquistas. Com medo que os filhos tomassem o mesmo caminho, ela esconde os fuzis como uma forma de impedi-los de ir para a guerra. Enquanto assa o pão, recebe a visita de um irmão que lhe conta os horrores da guerra e da necessidade de mais armas e mais soldados para evitar o pior. Durante o debate, em que ela defende a neutralidade perante os horrores da guerra e o irmão defende a necessidade de luta para que o pior não aconteça, recebe o corpo do filho que foi assassinado enquanto pescava. Então, ela percebe a impossibilidade da neutralidade e da necessidade de analisar a situação e tomar partido. E de quanto isso é difícil devido aos riscos e conseqüências. Essa peça é uma metáfora sobre a neutralidade da França e dos vizinhos da Espanha. A Guerra Civil Espanhola foi um grande laboratório para os nazistas medirem as forças que empregariam logo a seguir. Franco foi auxiliado por Hitler e Mussolini que testaram suas armas. Tendo vencido na Espanha, o próximo alvo foi a França e os países vizinhos. E o nazismo somente foi vencido quando houve a união de muitos países, inclusive o Brasil e os Estados Unidos. Se não tivesse havido essa união, a história poderia ter sido outra. No entanto, ainda hoje, com medo de perder o emprego, de enfrentar os poderosos e de comprometer o sustento dos filhos, muitos, como a Sra. Carrar, ficam com medo de sair às ruas e denunciar a opressão, os desmandos e o mau uso do dinheiro que nos é tirado para sustentar a máquina pública. Com essa atitude, perpetuam situações de injustiça, de opressão, de corrupção e de falta de transparência. Essa história me faz lembrar também a história de Salomão em que duas mulheres disputam a posse do mesmo filho. Salomão, então, propõe partir a criança e dar a metade para cada uma. Para manter a vida do filho, uma delas abre a mão de sua posse. Dessa maneira, Salomão descobre a verdadeira mãe e lhe entrega o filho. Para salvar a vida deles temos que arriscar. Acho que a velhice nos aproxima da juventude na busca da liberdade. Na juventude, a busca da liberdade e o enfrentamento dos perigos se dá pela busca de autoafirmação e de negar o velho, o antigo e propor um novo mundo. Na velhice, já fizemos tudo que conseguimos e não há muito tempo e força para realizar muita coisa. O corpo, já velho e cansado vai se tornando um peso, decompondo-se aos poucos. Não estamos mais preocupados em vencer mas que nossos filhos e netos tenham um mundo menos duro e mais feliz que o nosso. Não temos mais nada a perder e isso nos dá mais liberdade. Essa luta é que dá sentido para a vida que nos resta. Os filhos já estão criados, já ganham seu próprio sustento. Nós já não temos mais medo de perder o emprego e o que recebemos da aposentadoria vai dando para tocar o pouco que nos resta da vida. O que nos causa medo é a perda da saúde e dos movimentos, prendendo-nos na cama e tornando-nos dependentes de quem nos cerca. Por isso, precisamos de serviços de saúde nos quais poderemos confiar nossos filhos, familiares e nós mesmos.
Nota do Editor: Rui Alves Grilo é professor da rede pública de ensino desde 1971. Assessor e militante de Educação Popular.
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