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COLUNISTA
Alexandru Solomon
09/02/2010 - 07h02
Na biblioteca
 
 

Aquele ar vetusto tinha um quê indescritível. Sentado no seu lugar habitual, após ter preenchido a relação de livros que desejava, olhava pacientemente o teto e as luminárias de néon. Com a proximidade do vestibular, não tinha mais paciência para assistir às aulas do cursinho. Eram divertidas, mas a sala, com uma centena de concorrentes, pálida amostra do que seria o confronto maior, já era pequena demais para ele. Sentia-se sufocado. Além disso, uma imagem cruel o obcecava. Via-se pisando sobre as cabeças dos colegas, para alcançar o portão imaginário de uma faculdade, sabe-se lá qual. Precisava manter, ao mesmo tempo, a garra e deixar de olhar para seus rivais.

Digeria sem grandes problemas tudo o que os professores se esforçavam para transmitir. Fórmulas, formuletas, macetes, truques mnemônicos, cantorias, o vale-tudo perfeito. Só que todos, enfim, todos os mais capazes estariam por dentro dos mesmos segredos. Precisava de algo especial para criar a diferença, para que outros não pisassem sobre a cabeça dele. Sabia que, em caso de dúvida, nos últimos minutos teria de chutar, deixando para o acaso completar as lacunas de seu aprendizado. E novamente a dança infernal das fórmulas o envolvia: o período do pêndulo simples, o equilíbrio no calorímetro, a regra de Sarrus, a fórmula da elipse, um sobre quatro pi épsilon... Tudo organizado, mastigado por profissionais, transformado numa enorme diversão, numa farra.

Para a redação, sempre frases curtas, inserindo, se possível, uma ou outra frase de efeito já preparada e pronto! Sentia que não era o suficiente. Era necessário; contudo, poderia não ser suficiente. O espectro da nota de corte, ameaça impossível de definir, não lhe dava paz. Tinha que achar um meio de se sobressair.

Assim surgiu a idéia de estudar na biblioteca. Naquele ambiente tranqüilo, contrastando com o meio insuportavelmente barulhento em que se transformara o cursinho no calor da reta final, esperava encontrar o diferencial que o propulsaria para os sonhados bancos da faculdade.

O que faria depois era um outro problema. Sabia que naquele instante não poderia falhar. Não teria estrutura para suportar olhares de comiseração e... A pilha de livros já estava em cima da mesa. Era o dia de rever Mecânica. Abriu, ao acaso, o livro e começou a ler. O plano inclinado... claro, gê seno alfa. Repetiu mecanicamente. Daqui a milênios a fórmula será ainda a mesma. A mente já estava longe. Após alguns minutos, teve a sensação de estar sendo observado. Levantou os olhos e ficou atônito.

Sentada à sua frente, uma jovem, que poderia ter alguns anos a mais que ele, aliás uma certeza, olhava-o. Rosto bonito, cabelos castanhos, curtos, vestido estampado, boca carnuda e um par de olhos azuis imensos, fitando-o intensamente. Poderia ser apenas uma impressão. Continuou teimosamente a leitura e, depois de alguns instantes, levantou bruscamente os olhos. Ela estava fazendo anotações num caderno espiral, aparentemente absorta em sua tarefa. Ficou olhando por alguns instantes no vazio, implorando mentalmente para que ela o olhasse e mais uma vez os olhares se cruzaram. Ela estava fazendo o mesmo jogo! Desta vez sentiu-se pregado na cadeira. Nada comparável com os namoricos que havia experimentado até então. Estava literalmente cativado. O compêndio à sua frente já não o interessava mais e os preparativos para a competição sem quartel que o aguardava, poderiam esperar alguns minutos. Acompanhava fascinado os gestos da mulher à sua frente. Reparou a aliança na mão esquerda e voltou a detalhá-la. Pareceu-lhe ainda mais bonita, ao morder os lábios, enquanto se digladiava com algum mistério sepultado no livro que estava lendo. Ela o olhou e, de repente, sentiu que seu rosto se incendiava. A reação não deve ter passado desapercebida e lhe valeu um sorriso irresistível. Retribuiu.

Arriscou um “Oi, como vai”, cujo resultado foi um “shih” irado do vizinho. Lembrou-se divertido da frase de Oscar Wilde preparada para a redação do vestibular: “num concerto pedem-nos para ser mudos, quando gostaríamos de ser surdos”. Teve que ficar quieto, os outros demonstravam não ser surdos.

Ela parecia achar graça de tudo. Gratificou-o com o mais encantador sorriso cujo efeito foi subjugá-lo definitivamente. A seguir, destacou um pedaço de papel da última folha do caderno, escreveu algo, dobrou o papel e lhe entregou. Levantou-se. Ele fez menção de fazer o mesmo, mas um gesto e um sorriso dela o imobilizaram. Talvez nem tivesse forças para se levantar. Ela apanhou o livro, devolveu-o no balcão e, ao sair, já perto da porta, fez-lhe um sinal de adeus.

O bilhete continha um número de telefone, e a menção “Depois das 19h, Lúcia”.

Enfiou maquinalmente o bilhete no bolso e continuou olhando o livro à sua frente, sem conseguir progredir na leitura.

Agora, às vésperas de sua mudança, enquanto estava separando roupas que já não lhe serviam, ao vasculhar os bolsos, encontrou numa dobra do forro o pedacinho de papel teimosamente escondido por mais de dez anos com um inútil número de telefone de seis algarismos. Acabara de perdê-la pela segunda vez, ao reencontrá-la.

Crônica do livro “Apetite Famélico”, Ed. Totalidade. Disponível na livraria Pega-sonho (Rua Martinico Prado, 372 – Higienópolis – SP – Tel.: (11) 3668-2107).


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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