Parece que vive em mim duas pessoas: uma, calejada, meio cética, quase descrente do ser humano, devido às constantes denúncias de corrupção, gastos astronômicos com guerras enquanto milhares de seres humanos morrem de fome; o corpo já não tem a mesma vitalidade, os dedos e as mãos doem e quase não conseguem sustentar objetos; o prazer de ler fica comprometido por essa incômoda situação; o coração parece que vai explodir a qualquer esforço físico. A outra pessoa é uma criança que se encanta com a beleza do nascer do sol, com a beleza do mar, com os beija-flores; que acompanha o crescimento das plantas, o nascimento das flores e dos frutos do maracujá e do mamão que plantei no quintal. Me dá prazer ver o vigor e a variedade das cores do jardim e que isso é fruto do meu trabalho, que apesar do cansaço não é trabalho, é distração e criação. Apesar de sentir-me exaurido pelo trabalho de professor, de quase não ter tido contato com meus próprios filhos para cuidar de milhares de jovens e crianças que passaram pelas minhas mãos, sinto que a própria recriação e adaptação ao novo é fruto da constante tensão que existe no trabalho do professor no sentido de não tolher e não limitar o jovem que o vê como uma barreira a sua própria liberdade e necessidade de afirmação de sua personalidade. Uma pessoa muito importante na minha formação dizia que um jovem que não contesta, que não desafia não é um jovem normal. Uma atitude muito comum da parte dela e que procurei seguir no magistério era a seguinte: quando a gente pedia uma orientação, nunca dizia: “você deve fazer assim ou assado” mas sempre jogava uma série de questões para a gente pensar. Naquele momento dava uma certa insegurança e uma certa decepção mas depois compreendi o caráter pedagógico daquela atitude ao levar cada um a refletir e tomar uma atitude mais pensada e menos dirigida por outro. A contestação, de certa maneira nos desestabiliza enquanto adultos, dirigentes ou autoridades, nos tira da nossa comodidade e leva a gente a repensar nossas atitudes e valores. Para compreender esse processo me lembro sempre do método dialético de Marx para explicar a evolução da humanidade: tese x antítese = síntese. Nesse processo, a tese seria a velha geração, os adultos. A antítese seria a nova geração. Do choque entre as duas gerações surge a síntese – duas novas pessoas transformadas; na interação entre as duas, o velho incorpora os novos valores e a juventude incorpora valores antigos. Não há, portanto, nada inteiramente novo e nada inteiramente velho. No entanto, as mudanças estão cada vez mais rápidas, de tal maneira que fica mais difícil para os mais velhos incorporarem tantas novidades; e o mundo está sendo modificado tão rapidamente que fica cada vez mais difícil para os jovens entenderem como era o mundo da infância e da juventude de seus pais, quando os valores mais profundos se formam. Por outro lado vejo com certa emoção a proximidade, a alegria, o carinho e a interação de jovens pais brincando com seus filhos, trocando fraldas, dando mamadeira. Sinto o quanto nossa geração foi podada na expressão de suas emoções e de quanto distante eram as relações entre pais e filhos. Não sei até que ponto essa percepção se aproxima da realidade da maior parte da minha geração ou se é uma visão de uma pequena parcela. Mas hoje, ao ver uma galera se balançando num cipó para mergulhar no poção da cachoeira do Prumirim, fiquei tentado a fazer, a viver a alegria e o desafio daquele momento.
Nota do Editor: Rui Alves Grilo é professor da rede pública de ensino desde 1971. Assessor e militante de Educação Popular.
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