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COLUNISTA
Alexandru Solomon
10/01/2010 - 09h08
Dumas Filho
 
 

Primeiro, foram as amígdalas, a seguir, o apêndice, dois molares e, por fim, a próstata. Isto sem contar os dentes de leite e parte dos cabelos. Aos poucos, estava se despedindo do seu invólucro humano.

Tinha chegado à conclusão de que sempre iria encontrar novos desafios, proporcionados pela falta de previsibilidade que, afinal, dava graça à existência. Esta saída de cena em prestações irritava às vezes, mas, como estava seguindo o roteiro estabelecido pelo destino, não havia razão para uma inútil indignação. Era uma retirada organizada, que tinha se iniciado muitos anos atrás, a partir da infância, talvez até antes.

O passar dos anos havia compensado as perdas materiais já enumeradas por ganhos num quadro de acréscimos de experiência.

De vez em quando, voltava-lhe o ditado francês: Si jeunesse savait, si vieillesse pouvait... Evidentemente, se tivesse acumulado o saber atual, na época em que sobrava força, talvez tivesse conseguido escrever uma página diferente. Talvez tivesse se afastado um pouco mais da mediocridade. Decididamente, não era hora de fazer balanço algum.

Mas esperar a hora do embarque do vôo para Brasília, sem nada para fazer, era sempre um convite a devaneios.

Passava mais tempo em Brasília do que junto à sua família. Na solidão de Brasília, encontrava o contraponto da própria solidão. Na verdade, a sua atividade se resumia em contatar gente importante em nome de gente importante, tendo como resultado a garantia de uma vida confortável. Em compensação, tirando os jantares, almoços e tapinhas nas costas, sobrava muito pouco para ser contado. Era um profissional talentoso e dotado de uma notável capacidade de argumentação, raras vezes passava mais de uma semana longe do poder.

Como já havia despachado a mala, resolveu entrar na livraria do aeroporto. Adorava ler e começou a procurar algo que matasse o tempo da espera e do vôo.

Passou rapidamente por cima de alguns títulos de autores de nome sonoro, ensinando toda sorte de coisas em menos de duas horas. Desde falar em público, ser um bom vendedor, conquistar mulheres, ou preparar um maravilhoso suflê.

Virou as costas para a parede atapetada de revistas estrangeiras multicoloridas para praticantes de corrida, vela, radioamadorismo, para fanáticos de computador ou voyeurismo, e resolveu comprar A dama das camélias. Lembrava-se de haver lido a história muitos anos atrás e sentiu a vontade irresistível de reler aquela água com açúcar.

Pagou e começou folhear, a seguir mergulhou de vez. Entrou no avião com Armand Duval e ocupou o lugar junto à janela. Aquele livro fora compartilhado com R. muito antes do casamento. Ambos procurando abafar lágrimas com furiosas trocas de beijos.

R., sorriu ele.

Haviam chegado a quase noivos, naquele início dos anos 70, quando, por alguma conspiração do destino, que na oportunidade assumira as feições do pai dela, foram afastados. Ela viajou para o exterior, ele seguiu seu caminho, partindo do nada para chegar a um nada, com toque de refinamento, uma boa conta bancária, uma tradicional família burguesa e direito a reflexões amargas em Cumbica.

Repassou rapidamente a cena da exumação, o brilho dos salões, a cor das camélias, o pai de Armand irrompendo brutalmente e alterando o curso da história, o diário de Marguerite Gautier, a Prudence. Em menos de meia hora havia “lido” tudo. Ou melhor, havia revivido tudo.

Ao passar o carrinho de bebidas, percebeu ao seu lado uma presença feminina. Olhou o rosto. A formosura, mesmo fenecida, não deixava margem a dúvida alguma.

– Você!

– Você!

– Ficamos lendo o “nosso” romance? Confesso que, enquanto você estava absorto, eu acompanhei a leitura. Na verdade, sabemos de cor, sorriu ela.

Por instantes, pensou que os anos não haviam passado, que os estragos presentes no rosto dela, e ela devia estar pensando o mesmo, olhando para ele, não existiam. Tinham voltado mais de vinte anos no passado. Sensação agradavelmente estranha. Olhou de soslaio para a mão dela e viu a aliança quase que encoberta por um vistoso anel com uma esmeralda discreta como um show erótico no pátio de um mosteiro.

– Bem, então vamos brindar, disse ela. E após o tchin, contou rapidamente uma história que, naquelas circunstâncias, não lhe causou espanto. Formada em Paris, pós-graduação no INSEAD e, finalmente, tudo deixado de lado ao se casar. Acompanhara o marido nômade, diplomata de carreira, e estava no Brasil havia menos de dois meses. Helsinque, Varsóvia, Cairo, Madri e, agora, Brasília. Por quanto tempo? Ora, como saber?

Ele conseguiu resumir, em menos de um minuto, a sua trajetória, que, agora, mais do que nunca, lhe parecia insignificante.

Entreolharam-se.

– Ó tempo, suspenda seu vôo, começou ele. E parou sem jeito. Era como se houvessem se despedido na véspera e, ao mesmo tempo, havia um abismo a separá-los. Ficaram de mãos dadas por um instante, depois ela retirou a mão, a do anel, rapidamente, como que assustada pela audácia, ou retomada pela covardia de anos atrás.

– Fui covarde, não? emendou ela como respondendo à pergunta que ambos, seguramente, haviam formulado tantas vezes no passado. ”Por quê?”

– Fomos. E os olhares convergiram sobre o livro fechado, descansando no colo dele.

– Nunca mais peguei neste livro, disse ela.

– Nem eu, mas hoje deu uma vontade incrível. Premonição? Algo assim, não?

Ambos sorriram.

– Aquela foi uma história diferente, pois, se fosse comum, nem valeria a pena ser contada, disse R. Lembra? É mais ou menos assim que termina o livro.

Ambos conferiram. Terminava assim.

– E a nossa história? Vale a pena ser contada, mas ela só tem sentido para nós.

Durante anos, haviam seguido caminhos distintos. O breve encontro era apenas um fato diverso. Não deveria nem poderia ter qualquer tipo de seqüência. Um breve registro na memória de ambos, nada mais. Dois quase estranhos agora presos a órbitas rígidas, em universos distintos. O encontro era um sinal vindo de outros tempos, a luz de uma estrela morta brilhando por instantes, com rara e dolorosa intensidade para dois seres que, um dia, haviam sonhado o mesmo sonho e, por segundos, haviam ousado pensar, ainda que timidamente, ainda que, sem confessá-lo, ressuscitar um instante de magia.

O avião havia pousado. Desceram sem se falar e, após recuperar a bagagem, cumprimentaram-se, sufocando a necessidade de trocar um beijo enrugado por vinte anos de espera.

Do livro “Almanaque Anacrônico”, Ed. Totalidade. Livraria “Pega Sonho”: Rua Martinico Prado, 372 – Higienópolis – SP – Tel.: (11) 3668-2107).


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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