O ano velho havia decidido sair de cena. Ao menos era o que a folhinha estava dizendo. A contagem regressiva estava se desenrolando muito rapidamente para o gosto de alguns e de maneira insuportavelmente vagarosa para outros. Todos querem deixar para trás preocupações e iniciar o ano novo sem que nada os impeça enfrentar novos desafios. Para tanto, uns se vestem de branco, outros de amarelo, outros, enfim, mais objetivos, pagam dívidas antigas ou as trocam por novas promessas. Os despreocupados encontram uma razão adicional para se sentir donos de algo que não importa muito saber exatamente o que poderia ser. Mergulha-se, com a desculpa do espírito natalino, num oceano consumista, mesmo que, para alguns, esse oceano seja apenas uma simples e despretensiosa poça. A alegria e um vago sentido de irresponsabilidade consentida pairam no ar. Pois, se não deu certo até agora, tudo haverá de se endireitar no tão esperado Ano Novo. Mesmo para os sem queixa alguma, uma página está sendo virada e uma nova, em branco, aguarda. Todos prontos para deixar um autógrafo no livro da vida e, se possível, no de um parceiro de caminhada. Mas para tanto é preciso ter esse livro à mão e a inspiração pronta para galopar, docilmente submissa, a qualquer desejo. Não é sem motivo que nesses dias os problemas, dos mais diversos tamanhos, tendem a parecer de porte menor que as soluções, mesmo que para tanto entrem em jogo as mais diversas muletas morais, psicológicas ou verdadeiras. Até um eventual pileque na tradicional e chatérrima festa de fim de ano da empresa, com direito aos inevitáveis discursos e à troca de presentes inúteis, longamente negociados através da correspondência do amigo secreto, pode entrar em jogo. Momento para promessas: largar de fumar, perder aqueles quilos, voltar a se exercitar. De decisões heróicas também: confessar finalmente aquela paixão, ou de forma mais prosaica lançar-se em investimentos e aventuras, perder o sono à espera de um sim, mesmo que vindo do gerente do banco. Tudo isto num ambiente repleto de diversos clones de Papai Noel suando em bicas nos trajes que uma tradição importada esqueceu de tropicalizar. Mas convenhamos, um Papai Noel de bermudas até os joelhos e camiseta regata teria muitas chances de ser preso por vadiagem e teria ainda que, suprema humilhação, mostrar as notas fiscais dos brinquedos do famoso saco. Ser preso por sonegação tiraria qualquer motivação desses dignos pilotos de trenó. Por este motivo, talvez, os trajes vistosos, a garantir imunidade fiscal, mesmo que tão adequados quanto um biquíni para inspecionar fachadas de iglus. A voragem das horas traga impiedosamente os últimos compromissos que, na tentativa de sobreviver, invadem o ano seguinte. Por este motivo, pensar apenas na troca do velho sofá ou em recomeçar aquele curso de inglês não deveriam passar de tarefas que poderiam ser colocadas naquela agenda novinha recebida de brinde. Em compensação, a impossibilidade de se transferir a festa de réveillon, uma verdade eterna, a menos de generosas intervenções de um novo papa Gregório, continuava desafiadora, como repto aos eternos retardatários. Ele sabia disso, e todas as suas ações estavam sendo governadas por uma ampulheta imaginária, na qual a queda do último grão de areia coincidiria com o estouro de fogos e garrafas, não necessariamente nessa ordem. Via com crescente preocupação aproximar-se o fim do ano, sem ter a mais vaga idéia do que iria fazer no fatídico dia 31. Como a maioria dos mortais, prisioneiro da tradição gregoriana, achava que de alguma forma teria de saudar o Ano Novo de forma diferente do que faria com uma vulgar virada de quinzena. Esses pensamentos o acompanhavam no caminho de volta para o desconforto do seu pequeno apartamento. Caminhava rapidamente com a sacola de compras do supermercado a entortar-lhe a espinha. Poderia ter ido de carro, mas estaria ainda dando voltas ao quarteirão tentando achar uma vaga para estacionar. Mas, pelo menos, não teria de passar a sacola de uma mão para a outra. A sacola pesava, em boa parte devido ao sorriso da vendedora, emoldurada num bonito uniforme vermelho, que lhe empurrara, gentilmente, três latas de conserva de uma especialidade francesa cujo nome havia esquecido, tal a atenção que dera ao decote da moça, em detrimento da atenção que o produto mereceria. E docilmente obedecera quando soube que teria de levar pelo menos três latas para poder concorrer ao incrível sorteio, que daria ao felizardo qualquer coisa que já havia esquecido, tal tinha sido a vontade de agradar à moça. O prefixo do Jornal Nacional, vindo com toda a certeza de um lar de surdos, a julgar pelo volume, o colheu ao se aproximar do seu prédio. Tropeçou numa raiz que estava vencendo a luta com a calçada malfeita. Refeito do susto, lançou um olhar furibundo para a seringueira e continuou a caminhada. Entrou na sua rua, que deixara de ser escura como de hábito, devido a milhares de lâmpadas minúsculas a cingir as árvores. Árvores já velhas, que deviam sua sobrevivência ao fato de haverem sido plantadas numa época na qual os veículos eram menos agressivos. Rostos alegres, rostos preocupados, rostos indiferentes estavam se cruzando, mas a pressa parecia ser a tônica. Todos estavam com pressa. Era o penúltimo dia do ano. Enquanto andava, procurava, sem sucesso, uma idéia brilhante para o réveillon. Estava chegando no seu ninho, sem que nada lhe tivesse ocorrido. Entrou, cumprimentou o zelador, e logo depois o elevador o estava deixando no seu andar. Recém-formado, abandonara o conforto da casa dos pais e morava num pequeno apartamento alugado, num prédio já antigo e, por isso mesmo, de aluguel acessível. O prédio não possuía nenhuma das extravagâncias dos lançamentos recentes; em compensação, os dois quartos eram espaçosos, portanto falar em desconforto não passava de injustiça e a luz do corredor do andar era suficientemente fraca para facilitar as discretas e freqüentes visitas da esposa de um vizinho arquiteto. Entrou no apartamento, jogou a sacola em cima da mesa da cozinha e preparou-se para ligar a televisão, quando foi interrompido pelo telefone. Festa de confraternização da empresa do arquiteto, coincidindo com uma sugestão tímida de uma breve visita. Antes que pudesse retrucar, o tom de discar. Isto ainda iria terminar mal. Encontros sem paixão, mas cheios de riscos. O Jornal Nacional deveria estar terminando e o exército de viciados da novela estaria se preparando para o sofrimento do dramalhão lacrimoso. Insensível, sintonizou um velho seriado americano. Tudo bem superficial, pasteurizado, engraçado às vezes, sem pancadaria, homossexualismo reprimido, ou conflitos entre gerações. Ele adorava aquelas baboseiras previsíveis, altamente indicadas para acompanhar o jantar. Delegou a tarefa da preparação do jantar ao forno de microondas e, sem perder de vista as proezas da Feiticeira, abriu a janela contemplando a vista das artérias entupidas da cidade, garantia de um breve enfarte do trânsito. Droga, estava se aproximando dos trinta anos, sua vida profissional seguia uma trajetória ascendente, entendia-se às mil maravilhas com seus pais, mas continuava vítima do tédio que o acompanhava desde a adolescência. A todas as descobertas que fazia, sobrepunha-se a penosa sensação do déjà vu com o inevitável comentário, que nem precisava ser formulado – É só isso??? Nesses momentos recordava a canção de Jacques Brel, Os Burgueses. “São como os porcos, quanto mais velhos, mais burros” – Les bourgeois sont comme les cochons, plus ça devient vieux, plus ça devient bête... Mas, que diabo: ele ainda estava longe do declínio! Os amigos e amigas da faculdade estavam, com algumas exceções, bem de vida, e assim como ele, com acesso razoável ao consumo sofisticado, o tal consumo suntuário. Estava tudo bem, aparentemente, a menos desse tédio terrível. Pior que ele conhecia muito bem a causa disto. Simplesmente errara de profissão. Acostumado a ser bom aluno e a ser bem-sucedido em tudo, havia simplesmente se engajado, brilhantemente, numa carreira que não o interessava. Como parte do compromisso assumido consigo mesmo, continuava sendo o “bom da turma”, de uma turma com a qual pouco tinha em comum. Empunhar a bandeira errada havia sido seu mal. Elogiado por todos, ao fazer, e bem, algo que não o motivava, chegava a ser intolerável. Daí o sentimento de inutilidade. Às vezes, se achava um verdadeiro varredor de areia no Saara, inútil, desnecessário, supérfluo. Acordou bem tarde no dia seguinte, bem alegre, com o travesseiro impregnado do samsara da visitante, e sem nada para fazer. Lá fora, um sol escaldante transformava a Avenida Paulista numa verdadeira frigideira na qual iria acontecer a Corrida de São Silvestre. Decidiu ir até lá, ver e sentir de perto, ao menos, a emoção da largada da corrida feminina. Triste privilégio das mulheres, largar naquele calor infernal. Passou indiferente pela legião de vendedores de cachorro-quente e outros sanduíches suspeitos, além de cervejas e refrigerantes, todos altamente desaconselhados para as corredoras. Enquanto isso, a voz tonitruante de um locutor agredia os ouvidos e o bom senso de quem estivesse por perto. Triste profissão essa de ter de ficar sempre falando, mesmo quando o silêncio seria a manifestação mais eloqüente da emoção. De repente mudou de idéia e dirigiu-se para casa. Havia resolvido o problema do réveillon. Ele o passaria na melhor companhia possível: a dele. Entrou apressadamente no apartamento e começou a organizar o que seria seu jantar. Testaria a bendita conserva da vendedora bonitinha e, após vasculhar um pouco na despensa e na geladeira, compôs um cardápio digno do nome de Menu. Uma entrada composta de saladas e umas lulas à dorée, que seria acompanhada por uma garrafa de vinho Sancerre, um rosbife com ervilhas e cogumelos, e mais a conserva misteriosa, cassoulet agora já sabia, para os quais uma velha garrafa de Bordeaux, “chateau qualquer coisa” faria companhia, ajudando-o também a devorar o seu adorado Camembert comprado alguns dias atrás e que deveria estar no ponto, frutas e um sorvete de chocolate que, junto com a viúva Cliquot, o ajudariam a iniciar bem o ano. Deixou tudo quase pronto e deitou satisfeito. Estava tudo perfeito, quando lembrou que não poderia faltar o prato de lentilhas. Olhou para o relógio: passava das 11 horas. Teria de ser um pratinho, porque havia juntado às pressas víveres para um batalhão faminto, mas o poderoso aliado microondas estava a postos, as lentilhas não faltariam. Colocou tudo em cima da mesa, ornada por uma toalha absurdamente branca e correu para tomar um banho. Vestiu às pressas uma calça leve e uma camisa amarela, presente ganho na véspera, e começou a telefonar para uma pequena relação de amigos, deixando os pais para o final. Concluída essa tarefa, com a eficácia de sempre, abriu as garrafas de vinho e sentou-se à mesa. Já sob o efeito do Sancerre, sabia que a sua vida iria mudar, tinha o novo ano para se preparar para o grande salto, o Bordeaux o encheu de coragem e, ao chegar na garrafa de champanhe, sabia que estava brindando ao futuro de um médico. Seria o recomeçar. Uma nova profissão. Três garrafas, já semivazias haviam precipitado a mudança. O principal era seguir este novo rumo. O pipocar de fogos iluminando o céu da cidade confirmou que não estava sonhando. “Feliz rumo novo”, brindou.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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