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COLUNISTA
Alexandru Solomon
15/11/2009 - 13h32
O glenglarismo
 
 

Com belos sentimentos, faz-se má literatura — na opinião de André Gide. No entanto, na atmosfera rarefeita da filosofia, é forçoso admitir ser possível alcançar conclusões surpreendentes, a partir de belos sentimentos. Isso pode ensejar uma discussão interminável acerca do que possamos definir por “belo”.

Hegel sustenta que “a verdade só existe e só é, enquanto manifestada na realidade exterior, mas é-lhe possível ultrapassar a separação entre existência e verdade quando estas se reúnem e mantêm num todo que forme, por assim dizer, a alma de ambas e impregne todas as partes da manifestação”. Há, portanto, um limite, contudo, ele pode ser transposto. Daí, faz sentido a afirmação de Husserl, ao sustentar que “Todo pensar, e sobretudo todo pensar e conhecer teóricos, perfaz-se em certos ’atos’ que surgem em conexão com a fala em que se exprimem...” logo, é também nesses atos que está a fonte das respectivas idéias gerais e puras, cujas conexões, regidas por leis ideais, a lógica pura quer explicitar e cuja elucidação a crítica do conhecimento quer levar a cabo.

Ultimamente, com Derrida, houve uma inversão de valores; ao invés de privilegiar a palavra em detrimento da escrita, a nova proposta de “desconstrução” sugeria exatamente o contrário.

Não há consenso quanto à existência de um caminho a ser seguido. Mais ainda, nem existe a certeza quanto à possível determinação da possibilidade de definição desse caminho.

Lamentavelmente, um fenômeno recente colocou na berlinda o advento de um determinado tipo de charlatanismo intelectual que se fundamenta na utilização de jargões herméticos, cuja finalidade consiste em anestesiar o poder de análise daqueles a quem é imposta essa carga pretensamente erudita. O medo de passar por desinformado motiva o surgimento de intensos e acalorados debates em torno de platitudes com roupagem formal.

O Glenglarismo – corrente do pensamento cujos primeiros passos coincidem com o início do terceiro milênio — surgiu como antídoto racional a essa agressão, rotulada por Alan Sokal de Imposturas intelectuais.

Um texto não pode ser apreciado apenas pelo fato de acumular citações de autores de prestígio, pois se for essa sua única qualidade, pelo conhecido efeito da realimentação — para que abusar do vocábulo feedback? — irá levar a um ganho tendendo ao infinito em cima de uma formulação de valor zero, portanto a uma indeterminação.

O nome da corrente derivou de uma fórmula mnemônica empregada pelos seus fundadores e, pelo seu apelo fonético, impôs-se como vocábulo, antes de se firmar como método de abordagem filosófica de alguns problemas básicos, sobretudo no que tange às técnicas de argumentação. Por ser essencialmente experimental, embora não dissimule suas aspirações à universalidade, o glenglarismo recebeu uma aceitação morna por parte da comunidade acadêmica. Trata-se de flagrante injustiça, uma vez que, na ausência de uma refutação, no sentido de Popper, apegaram-se seus detratores a vícios formais de importância menor. O verdadeiro debate foi ofuscado por questões de lana-caprina, expediente lamentável, apesar do prestígio daqueles que empreenderam a campanha de aviltamento.

O conflito, prestes a eclodir, foi adiado ao ser possível identificar, ainda que elipticamente, a convergência do glenglarismo, a partir de sinais inequívocos de engajamento político, para um compromisso com a incessante estratificação inerente a qualquer processo investigativo.

Voltando a Derrida, admite-se que, ao derrubar a subordinação da escrita à voz, o fez de forma ruinosa sem uma verdadeira sistematização do processo de desconstrução — famoso desfazer para reconstruir, conceito que para alguns merece apenas o rótulo de “repensar”. - Para ele “a necessidade da violência está inserida no justo da justiça”.

Admirador de Heidegger, Derrida não foi até contestá-lo quando o filósofo alemão afirma que “Uma observação terminológica preliminar regulará o uso da palavra ‘transcendência’ e preparará a determinação do fenômeno com ela visado.” Transcendência, entendida como ultrapassagem, se estende ‘de’ algo ‘para’ algo, incluindo-se assim o horizonte em direção do qual se realiza a ultrapassagem.

Nos trabalhos preparatórios do “Segundo seminário do glenglarismo”, esse conceito é combatido acerbamente. Um “paper introdutório” ressalta a inconsistência da adoção de um referencial newtoniano, mesmo admitindo a flexibilização das restrições que a adoção de coordenadas polares embute necessariamente. Para os autores, que nesse ponto concordam com Derrida, é importante a desconstrução do chamado “haptocentrismo” ao qual se submete o pensamento ocidental depois de Platão. Sem ser intuitivo, o fascínio exercido pela negação da transcendência é inegável. Neste ponto, ao invés de acirrar a polêmica, pretendem os glenglaristas uma acomodação, ainda que provisória, com a consistência com o que seria uma leitura mais generosa de Merleau-Ponty, em particular.

Da mesma forma que “se bem que nenhuma teoria científica como tal — quem afirma é Karl Popper — não possa incitar diretamente à atividade, poderá encorajar aqueles que se sentem na obrigação de realizar algo”, a necessidade de realizar algo permeia os mais recentes trabalhos dos glenglaristas.

Daí, ao admitirem como Salanskis, em “Para uma epistemologia da leitura”, que é praticamente impossível provar que um texto carece de sentido, pois para tanto seria necessário esgotar todas as suas possíveis interpretações, os glenglaristas adotam uma posição mais pragmática, ao sustentar que, adotados determinados parâmetros, certos textos podem estar desprovidos de sentido. Longe da distinção que Platão faz entre original e cópia, os glenglaristas, ainda que de uma forma pouco contundente, pretendem eliminar excessos formais, estéreis na sua essência metafísica.

É importante entender os limites da controvérsia. Segundo Schopenhauer, “a dialética erística é a arte da controvérsia conduzida de modo a se ter sempre razão”. Ensina o mestre: “É possível ter objetivamente razão, no que diz respeito ao objeto do debate, mesmo estando errado do ponto de vista dos presentes e, por vezes, de si mesmo”. No momento, o argumento da autoridade faz falta aos glenglaristas; nem poderia ser diferente. Porém, a autoridade dos seus argumentos conduz a fascinantes especulações. A receptividade das reflexões não condiz com a neutralidade da postura de verdadeiros intelectuais.

Epítetos pejorativos não são — por sorte, diga-se de passagem — uma forma de contestar uma tentativa cativante de atribuir uma nova moldura ao algo alquebrado referencial de valores ocidentais. A comunidade acadêmica, superado o impacto inicial causado pelo surgimento do glenglarismo, passou a dedicar-se a uma análise paralela do seu conteúdo, completando, de certa forma o exercício de auto-análise ao qual essa corrente do pensamento dedica seus principais esforços. Depois que Gödel provou que, num sistema lógico formal existem assertivas verdadeiras que não podem ser provadas, a tarefa do glenglarismo torna-se menos árdua. Mesmo assim o estabelecimento de uma base formal menos dependente de observações empíricas representa o maior desafio. Breve, a legião dos glenglaristas estará presente, através de trabalhos teóricos, em todas as publicações científicas.

Bem antes do que se possa imaginar, irá se realizar em Paros — patrocinado por um magnata local — o II Seminário glenglarista.

O mote do evento foi tomado emprestado ao já mencionado Alan Sokal. “Tudo que é obscuro não é necessariamente profundo”

Aguardemos.

Em tempo: Glenglarismo não existe, ao menos por enquanto. Sinceramente, nada tenho contra o fato de chamarmos de Glenglarismo a manifestação de uma comunidade que afirma não se deixar enganar por falsos profetas e falsas profecias. Em suma, que decidiu abrir os olhos.

Impostores e imposturas é que não faltam. Opor-se a esse lixo, pode chamar-se de glenglarismo. Por que não?

Crônica do livro “O Desmonte de Vênus.” (Ed. Totalidade). Disponível nas livrarias Cultura, Saraiva, Laselva e Pega-sonho (Rua Martinico Prado, 372 – Higienópolis – SP – Tel.: (11) 3668-2107).


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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