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COLUNISTA
Alexandru Solomon
08/11/2009 - 17h13
Teimosia
 
 

Pois é, essa a praia dos donos da verdade. De alguma forma aprisionaram a ave rara ou, melhor dizendo, pensam tê-lo conseguido. Defensores pertinazes desse algo difuso, aceitarão qualquer desafio, tentando comprovar o quanto acertaram. Os verdadeiros teimosos não aceitam outra voz, a não ser a própria, convenientemente confundida com a da razão. Tornaram-se guardiães das próprias quimeras. Guardiães ou reféns?

Nada mais ilusório do que esse ‘status’. Infeliz miragem em dois tempos. Em primeiro lugar desfilam os orgulhosos, persuadidos de possuir o saber. O que seria essa posse? Simplesmente deter a senha que dá acesso à verdade única, total, mítica. ‘Eu tenho certeza disso’ está estampado nos seus cartões de visita, na sua roupa de cama, nas suas lápides mortuárias.

Impossível encontrar algo mais perigoso do que a certeza de um ignorante, a não ser a certeza de um sábio. Isso por uma razão bem simples. O tolo possui pouca credibilidade. Está persuadido de dominar algo, mas ninguém dá a mínima importância. A pregação dele será, via de regra, corroída pela chacota associada ao seu primo, o descrédito, ao qual se junta a gargalhada da qual o néscio se faz merecedor. A armadura das suas certezas absolutas não passa de um fugaz jogo de espelhos, do qual ele é o único dependente. Ele irá espernear. Poderá até discursar em praça pública, mas tudo durará o tempo necessário para que os curiosos tenham saciado a vontade de dar uma impiedosa gargalhada. Poderá até, vítima da soberba, achar que por instantes foi o soberano sem coroa de um reino sem fronteiras. ’Eu sei que...’ Não sabe. Está equivocado. Sob sua bandeira não haverá seguidores. Viva o bloco do eu só! Até esse ponto, será apenas um pobre diabo, embora não o confesse nem ao seu prendedor de gravata, se é que o tem. E quem diz que isso lhe basta? Para ser um verdadeiro teimoso, terá de persistir na crença, chovam canivetes ou raros perfumes. Nada o abaterá de sua rota, segmento de reta sem nada que o defina. Impermeável a qualquer argumentação ele é um ‘homo sapiens’ apenas na classificação animal. Sem argumento para defender suas posições e sem a menor intenção de modificá-las, cobrará apoio. Ao ver que este lhe é negado, enfrentará o bom senso e o mundo se preciso for. Uma paixão não compartilhada é outra oportunidade que o destino oferece para exercitar a caturrice. Rejeitado, nunca aceitará essa condição. O amor se transforma em ódio. O preço da transformação, para a pessoa amada, poderá ser a vida.

O sábio vitimado pela ‘fata morgana‘ de um sofisma ao qual sucumbiu, está numa situação diferente. Possui credibilidade. Além do argumento da autoridade, ostentará a autoridade dos argumentos, com os quais poderá subjugar outros, arrastá-los para empreitadas ousadas, transformá-los em bucha de canhão do seu próprio equívoco. Inebriado por poder cooptar discípulos, será um eterno insaciável. Proselitismo é a sua arma. Seu discurso, viciado pelo erro do qual não tem consciência, convence, seduz, cativa, arrasta. Diferentemente do tolo, apegado para sempre a um falso conceito, ele poderá analisar e, um belo dia, descobrir o erro. Sendo teimoso, no entanto, não irá reconhecer que a aventura, para a qual seu poder de persuasão arrastou multidões, partiu de uma premissa falsa, ou, por algum atalho proibido pela lógica, levou a uma aberração que o derrubou. Admitir o engano é mais doloroso do que qualquer perda material. O orgulho irá se opor empedernidamente. Saberá morrer abraçado a um fantasma translúcido, acreditando ser do fantasma o perfeito amante. Vestígios de razão tentarão conquistar algum espaço. Em vão.

O sábio pode também se apaixonar, embora a paixão se pareça com a antítese da sabedoria. Na verdade, a conseqüência imediata da flechada de Cupido será relegá-lo à categoria anterior. Saberá, se rejeitado, dar contornos diferentes ao drama. Não será capaz de desistir. Nem sempre Cupido está disposto a desperdiçar sua preciosa munição. Às vezes, se limita a disparar dardos de paixão política. Em época de liquidação, serão os da paixão clubística. O efeito é o mesmo. Vítima da servidão humana, o alvo seguirá cedo ou tarde a coreografia do desespero.

Tolo ou sábio, o cacoete de fazer pé firme está presente. Os estragos que o sábio poderá causar serão infinitamente maiores além de deixar profundas seqüelas.

Entre esses dois extremos surge um instigante ser híbrido, o líder carismático, que suficientemente basbaque para ser líder, ou cegado pela ilusão de ótica causada por algum clarão de verdade particular que pensa ter descoberto, grita as suas palavras de ordem, repetidas pela patuléia. Reparem que a massa de manobra será composta pelos que não têm capacidade de discernimento – outros pensaram por eles – ou então caíram na armadilha de alguma vulgar inverdade, vendida numa embalagem convincente. Não há teimosia nas ovelhas de Panurgo, apenas integram alguma unanimidade burra. O grande líder incapaz de uma mudança de rota, breve se torna um maquinista de trem desgovernado. Os trilhos da teimosia o guiarão ao fracasso. A História está repleta de momentos nos quais faltou a ‘maldita lucidez.’

Para o gran finale dessa pequena história, reservei a cruel surpresa que ignora o QI da vítima, o segundo tempo da miragem. Raras são as verdades eternas. Ai das vítimas que se sacrificam no altar dos conceitos que já perderam sua validade. Defenderam com unhas e dentes um fantasma que, do alto de um degrau mais alto do conhecimento, revelou-se enganador. Nessa fossa comum, o lorpa e o filósofo coabitarão em harmonia sob a vaia estrepitosa da posteridade. Se não for vaia, será a aceitação indulgente com a qual brindamos o ‘E pur si muove’ de Galileu. Heróico ao insistir na sua idéia, seu conceito de Universo não passa de brinquedo no jardim da infância do conhecimento atual.

Alguns estarão fazendo mofa, achando que isso não lhes diz respeito. Eles não são teimosos – acreditam – são determinados, pertinazes, persistentes, coerentes, enfim. Pode ser. Perseguiram tenazmente não uma idéia, e sim uma ambição ou um objeto material. Pensam ter entrado nesse comentário como Pilatos no Credo. Por teimosia, jamais aceitarão o rótulo de teimosos.

Crônica do livro “Sessão da Tarde”, Editora Edicon. Disponível na livraria Pega-sonho (Rua Martinico Prado, 372 – Higienópolis – SP – Tel.: (11) 3668-2107).


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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