Um espectro rondava a mente de Caio: Vanessa tinha um amante. Agora tinha certeza disso. Não havia espaço para a menor dúvida. Certeza absoluta. Como era possível ser tão cego? Ela teria de lhe confessar. Imediatamente. Caio estava transtornado. Bem que ele suspeitara. Aliás, as suspeitas eram bem antigas. Para ser mais exato, era um processo cíclico que se iniciara logo depois da lua-de-mel, exatos dezoito anos atrás. Caio adorava Vanessa, mas devido à sua obsessão, qualquer ato dela assumia a dimensão de prova irrefutável de infidelidade. Quantas vezes, alegando distração, não pegara a extensão do telefone, tentando obter a demonstração contundente. Isso sem falar nas voltas para casa nos momentos mais improváveis, nas revistas secretas das agendas, na abertura “por engano” de correspondência, sem esquecer a contratação de um detetive. Diga-se de passagem, em momento algum conseguia encontrar qualquer “prova” que resistisse a um pingo de lógica. Resultavam discussões ardorosas, nas quais ele iniciava com tom dramático, capaz de relegar Torquemada à condição de aprendiz, dizendo saber de tudo e sugerindo como saída única a confissão completa. Antecipando-se à tal confissão redentora, já pedia, aos brados, que ela lhe dissesse o que o “outro” tinha de tão especial, se era mesmo melhor na cama ou se era mais inteligente, mais charmoso. O que enfim a tinha empurrado para esse ato, preparado minuciosamente, disso ele não tinha a menor dúvida. O quê? Coroava a peça de oratória com uma interrogação patética. “Onde errei?” Nas discussões, perdia totalmente o controle, desgarrava-se por completo. – Você pensou que ia conseguir me tapear. Acha que sou cego? Vamos, confesse que eu não passo de um imbecil chifrudo. Vagabunda! Gritava, chorava, ameaçava-a de morte. Ia matá-la junto com aquele miserável e iria se suicidar logo depois. Sim, seria nessa ordem mesmo. Primeiro o infame, a seguir aquela que tripudiara do seu amor e, por fim, iria se suicidar. Dona de uma paciência invejável, ela deixava passar a tempestade, para depois desfazer os equívocos. Vanessa amava Caio. Por qual outro motivo teria suportado essas explosões de fúria descontrolada? E Caio idolatrava Vanessa. Por qual outro motivo teria provocado essas cenas burlescas? Tudo terminava com a capitulação incondicional de Caio. À guisa de mesa de negociações, o travesseiro. Testemunhas, as paredes do quarto, ou de um motel. Passada a crise, o marido arrependido jurava ter sido aquele o seu último ataque de ciúmes. Nunca mais iria duvidar da sua adorada Nessinha. Para comemorar o fim das hostilidades, por ele desencadeadas, oferecia um presente, em geral uma jóia, transformando, com o passar dos anos, a esposa em vitrine de joalheria. Um dos últimos presentes fora um bracelete de ouro com alguns balangandãs. Vanessa ficou encantada com o bracelete, apesar de reclamar, às vezes, que o precioso mimo lhe desfiara uma meia. Mas, em país tropical, o uso de meias não é tão freqüente, razão pela qual raras foram as reclamações. Ao contrário do Caio, Vanessa não era ciumenta. Sabia conjugar o verbo confiar em todos os tempos. Foi no meio de uma manhã comum que, mais uma vez, Caio surgiu no apartamento, sem avisar, no meio da tarde. – Sei de tudo. Desta vez terá de confessar. Não há como negar. De quem é essa caneta que encontrei na sua bolsa? Como pode me fazer isso? Que vergonha! Agradeça por não ter acordado você. Fiquei até agora em meio a reuniões, respeitei seu sono e o que ganho com isso? Chifres! Eu começo trabalhar às sete para lhe dar tudo que deseja, a dondoca fica brincando em meio-expediente, começa às duas e pronto, dá nisso. Desgraçada! – Essa caneta é sua, bobinho. Lembra que a compramos juntos quando estivemos em Roma? Lembra? Foi naquela loja na Via Veneto, junto àquela banca enorme de jornais. Ainda falamos que a mulher, aquela velhota, era uma graça e se parecia com a tia Mirela. A revelação desse simples fato espantou, como por encanto, todas as suspeitas. O argumento era irrefutável. – É mesmo. Desculpe, meu amor. Juro que nunca mais ocorrerá. Vamos para o quarto, fazer as pazes? Foram. Ocorre que uma boa dor de cabeça pode comprometer a celebração de um armistício. Depois de debates infrutíferos, Vanessa resolveu. – Querido. Descanse. Vou ao Shopping e volto logo. – Vai demorar? – No máximo umas duas horas. Fique bonzinho. Para você agora, um strip-tease ao contrário. Preste atenção. Fascinado Caio viu Vanessa se vestir. Primeiro, as peças íntimas; depois de uma pequena e deliciosa pausa, um vestido decotado de algodão estampado a cobriu. Uma sandália leve, de salto alto, valorizou as pernas bronzeadas e, finalmente, ela colocou o bracelete no braço direito e um anel de fantasia na mão esquerda, em cima do anular, junto à aliança. – Verificou o fecho do bracelete? Cuidado com esses assaltos. Morro de preocupação toda vez que sai sozinha. – Pare de se preocupar. Agora nane bem. Não vai voltar para o trabalho agora, né? Não faz sentido. Tome um comprimido para acabar com essa enxaqueca. Beijou-o e saiu, deixando o quarto numa agradável meia-escuridão, ao puxar as cortinas. Sozinho, Caio tentou relaxar. Impossível adormecer àquela hora da tarde. O perfume dela estava presente no quarto. Imerso num agradável torpor, rememorou a cena. Realmente Vanessa era um anjo. Que paciência para suportar todas essas manifestações de ciúme doentio. Claro aquela lojinha em frente ao Hotel Excelsior. Como pode esquecer? Decidiu. Ele teria de mudar, antes que a paciência dela fosse desmoronar. Ela o amava. Só o amor a impedia de mandá-lo às favas. A dor de cabeça estava amainando. Mal podia esperar a volta dela. Familiarizado com os ruídos do apartamento, logo percebeu a volta dela e, pulando da cama, voou ao encontro da amada. Amava-a como no primeiro dia. Não, não como no primeiro dia, muito mais. Encontrou-a no corredor e a abraçou, cego de paixão, recebendo em troca um beijo cinematográfico. Se o amor não fosse cego, talvez estranhasse estar o bracelete no braço esquerdo da amada. Crônica do livro “Mãos Outonais” (Ed. Totalidade). Disponível na Livraria Pega Sonho: Rua Martinico Prado, 372 – Higienópolis – SP – Tel.: (11) 3668-2107).
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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