Maquinalmente, olhou o relógio. Passava das quatro horas da tarde. Caminhava apressado, sem dar muita atenção aos transeuntes. Tinha a pressa de quem não vai a lugar algum e, talvez por isso mesmo, não quer chegar atrasado. Um bonito final de tarde, mesmo para quem nada tinha em mente. Na rua, a agitação habitual: pessoas cinzentas incapazes de sorrir, insensíveis ao encanto do momento. Apenas a preocupação de não ser “trombado” ou de disputar em desvantagem a faixa de pedestres, tão cobiçada pelos carros. Na calçada suja, os indefectíveis buracos, prontos para derrubar o transeunte incauto. Maquinalmente, olhou o relógio. Quase cinco horas. Faltavam apenas cinco minutos. E foi assim que, apesar de todos os cuidados, quase foi se estatelar no chão. A mendiga estava sentada na calçada, encostada num muro, as pernas ocupando parte do passeio. Deteve-se na caminhada, mesmo porque um grupo vinha em sentido contrário, obstruindo-lhe a passagem. Não ia pular por cima daquelas pernas. Olhou com um misto de curiosidade e pena a criatura andrajosa. Não era possível definir-lhe a idade. Menos de trinta, mais de dezesseis anos. A seu lado uma criança maltrapilha segurava-lhe a saia suja; em o fazendo, desnudava-lhe em parte uma coxa. No fundo, eram duas meninas, igualmente sujas, igualmente derrotadas pela vida. “Compre um paninho, moço. É para me ajudar.” Não era o momento de explicar-lhe que melhor teria sido se dissesse, “Compre esses panos, que vão lhe ser úteis e assim minha filha e eu poderemos comer”. “Um real os três, moço”. Procurou no bolso, sacou um maço de notas, notando o olhar maravilhado da criança. Espantou o sentimento de culpa. Escolheu uma nota de cinco e resolveu. “Tome. Quero um só pano, o mais bonito. Não quero troco”. Ao falar, inclinou-se um pouco e notou os traços bonitos da mulher. Se ao menos pudesse arrumar aquele cabelo desgrenhado, passar uma água no rosto, com certeza bastaria vestir uma roupa decente ao invés dos farrapos e... Ao se inclinar, sentiu a tontura. O rosto da mulher iluminou-se. Ela o fitou e seu olhar pareceu incendiá-lo. Não era possível. Algo muito estranho estava ocorrendo. Onde estava a mendiga? Não havia mais rua, apenas um salão de baile iluminado por velas enormes. A seu lado, vestindo roupa de gala, uma linda mulher revelada pelo vestido longo, cuja cauda era segura por uma menina saída de um quadro, uma pintura. Linda como ela só. — Faça-se sua vontade, senhor, murmuraram as duas. A dama apoiou levemente um braço coberto até o cotovelo por uma luva branca no ombro do cavaleiro. O perfume envolvente o deixou sem ação. — E a nossa dança, lembra-se disso? — Sim, lembro bem. — Como poderia esquecer-se da dança pela qual esperara a vida inteira? — Então, o que o detém? Os músicos estão impacientes — Não ouvia música alguma, apenas sentia aquela presença perturbadora. Começaram a rodopiar. A luz tênue tornava a mulher mais desejável ainda. Valsa nunca fora seu forte, mas, naquele instante, sentia-se o mais perfeito bailarino da face da terra. Duas plumas enlaçadas flutuaram na atmosfera de magia. Não havia lugar para palavras. Apenas algumas banalidades sussurradas por vozes que a emoção sufocava. — Obrigado por me conceder esta honra, senhora. — Vamos, vamos girar, esqueceremos de tudo. O que está esperando? No redemoinho haveremos de encontrar um segredo que a ninguém revelaremos. O mundo é nosso. Quer ver como ele fica bonito, visto de cima? Vamos voar, ao encontro da louca tentação de sermos, por essa breve eternidade, os verdadeiros senhores do nosso destino. — Irei segui-la, senhora. Só tenho minha vida a lhe oferecer. Pois é sua. Disponha dela a seu bel prazer. — Isso não será o bastante. Juntos, seguraremos a marcha do tempo, nossa testemunha. Agarre este raio de luz. Ele vem de um astro que já não existe mais, para ser nosso guia. Entenda que nada poderá deter-nos! — Como pude viver sem tê-la conhecido? Qual o nome deste sonho? — Não há sonho algum. É a vida que nos oferece essa dádiva. Loucos, mil vezes loucos seríamos se não a aceitássemos. Veja como tudo ficou mais bonito. Olhe, senhor. Visto daqui, o mundo é outro. Já não estavam mais no salão. Tragados pelo vórtice irresistível de uma força misteriosa, acabaram alçando vôo rumo ao desconhecido. Sentia no ombro o toque da mão enluvada. A seda do vestido reluzia debaixo de um luar alucinante na sua beleza. Onde estariam? Sobrevoavam um mar de luzes que aos poucos se fundiam num único clarão. Não poderia perder um detalhe sequer. O frufru da seda, o perfume, a vista, o choro melancólico de mil violinos... — Amo-o, meu senhor. — Finalmente as palavras tão esperadas. — Aproximou a boca da mulher, sentiu um sabor estranho. O beijo era amargo. Tão amargo quanto a decepção. Quando deu por si estava com a boca na calçada e o sabor era o do sangue do seu lábio partido. Olhou em volta e notou a multidão. Maquinalmente, olhou o relógio. Faltavam uns vinte minutos para as cinco. Crônica do livro “O Desmonte de Vênus” (Ed. Totalidade).
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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