“Se o sentido mais próximo e imediato de nossa vida não é o sofrimento, nossa existência é o maior contra-senso do mundo... Embora toda infelicidade individual apareça como exceção, a infelicidade em geral constitui a regra (...). O consolo mais eficaz em toda a infelicidade, em todo sofrimento é observar os outros, que são ainda mais infelizes do que nós.” Assim falava... Schopenhauer. Antes de soçobrar no mais profundo desespero, vale a pena examinar se existe um escudo suficientemente poderoso, capaz de oferecer-nos a indispensável “blindagem” – para usar um termo utilizado abusivamente – proporcionando a indispensável proteção contra esse flagelo. Salvo cruel engano, essa adarga existe. Trata-se da preguiça. Nada de “ócio criativo”, apenas a preguiça na sua mais plena e rasa concepção. Nada mais prático, para ilustrar o conceito, do que lançar mão de uma figura de estilo que, apesar do seu cartão de visita bombástico, merece calorosa acolhida: a hipálage. Lá vai... “O preguiçoso apóia-se num segredo esperto”. Na verdade, é o preguiçoso esperto que encontra sustentação a partir do domínio do tal segredo, o de nada fazer. Eis a receita, o antídoto por excelência. O ficar imóvel no meio do rio das nossas existências vendo a criação e o desaparecimento de irrelevantes redemoinhos. O desespero não consegue atingir o verdadeiro indiferente. Mais hipálage. O desespero verdadeiro não atinge o indiferente. Alguns escritores têm dedicado belas páginas ao assunto. Pilhar sabedoria alheia, de certa maneira é uma demonstração de preguiça. E, sobretudo, jogar para o alto, despreocupadamente, os ensinamentos de La Fontaine, na sua fábula do lavrador e seus filhos, proporciona um raro prazer. É sabido que qualquer um de nós pode realizar uma tarefa, desde que ela não faça parte de suas atribuições. Resolver o problema do outro, em suma, é tão mais fácil. Que o digam os partidos de oposição, sempre dispostos a oferecer alternativas interessantes na condução da administração de um país, mas totalmente incapazes de concretizá-las, assim que a voz das urnas os convida para a consecução das propostas com as quais bombardeavam a situação. Fugindo um pouco do terreno pantanoso da política, encontramos ilustrações impactantes junto a gestores de fortunas, incapazes de se tornarem ricos, a psicanalistas necessitados do apoio de colegas, ou de críticos de arte, valentes na hora de torpedear eventuais talentos, sem a capacidade de rivalizar com eles no terreno a respeito do qual emitem altissonantes opiniões. A variável tempo tampouco poderá ser negligenciada. Parece ser necessária uma particular aplicação para fazer menos na medida em que se dispuser de mais tempo. Aos incrédulos, bastará acenar com o exemplo edificante da elaboração da declaração de imposto de renda, estatisticamente deixada para os últimos dias do prazo concedido. Supondo que uma prorrogação inconfessadamente desejada seja concedida, o acúmulo nos últimos momentos não perderá nada de seu vigor. Importante, diz Jerome K Jerome, é que o verdadeiro preguiçoso é aquele que se depara com uma montanha de obrigações. Qual o mérito em nada fazer quando não há tarefa para cumprir? O verdadeiro preguiçoso vive submerso em obrigações. O talento consiste em manter-se ocupado com verdadeiras bobagens, deixando por último o que for realmente urgente. O urgente pode atrasar, eis o segredo. Nada mais edificante do que a imagem de um funcionário público atrás de um guichê. Espera-se dele a carimbada mágica, capaz de propulsar um expediente algumas mesas para a frente. Que o solicitante esteja perto ou longe, pouco importa. Outras tarefas irão assomar ao cume das suas prioridades: procurar a caneta vermelha, concluir a leitura de um artigo de jornal, arrumar o nó da gravata. Diante desse acúmulo acachapante de obrigações, é fácil entender que a solução do problema de um reles contribuinte passa por um labirinto, cuja transposição pode consumir as horas de expediente. De qualquer maneira, atender aos anseios de uma fila impaciente e crescentemente hostil é a melhor forma de ilustrar a total impossibilidade. O mito da produtividade: fazer cada vez mais com cada vez menos insumos não passa de uma lenda, uma espécie de miragem, uma Fata Morgana, capaz de motivar teóricos de administração científica, por definição, capazes de dar preciosos palpites, mas incapazes de executar qualquer um dos roteiros com os quais poluem mentes bem-intencionadas. Naturalmente, serve como bandeira em negociações de reajustes salariais, quando é cuidadosamente examinada pelos valorosos seres, cuja descrição acabou de ser bosquejada. Quando um juiz define ter sido x% a produtividade a ser levada a milhares de holerites, nada mais faz do que preguiçosamente lançar mão do uso do seu poder, misturado á capacidade de barganha. Louve-se, pois, a preguiça refratária a todo e qualquer impulso externo. O verdadeiro preguiçoso resiste aos sermões oportunistas e acolhe com preguiçosa gargalhada as tentativas de arrastá-lo para a indesejável trilha do coelho apressado do conto de Alice. Longe de ser dinamite pura, essa defesa do nada fazer inspira-se no comportamento do bicho-preguiça, cuja sobrevivência no meio de um universo impregnado pelo conceito darwinista da continuidade do mais capaz ilustra à saciedade a inutilidade do estresse típico de uma sociedade que pensa ter achado o caminho da perfeição, quando na verdade, nada mais fez do que encontrar a maneira segura de perpetuar o cansaço. O descanso possui um mérito inconteste. É possível descansar sem ter estado cansado. Nada como declarar no meio de um domingo de total inatividade: Chegou a hora de descansar! Chega de gerar mais-valia. Não há recompensa para os verdadeiros esforçados a não ser um possível enfarte, o qual, diga-se de passagem, pode ser conseguido sem desenvolver uma atividade frenética. Roubar preciosos minutos à atividade febril, duplamente condenável, por ser atividade e por ser febril, e alocá-los na rubrica da inatividade, deitado numa praia, é uma prova de sabedoria. Os obcecados pela objetividade poderão questionar ad nauseam esses saudáveis princípios. Começarão possivelmente indagando de que forma é possível sobreviver, no mundo moderno, sem nada fazer. Na verdade, por enquanto identificamos o não-fazer como um ideal em si. De que maneira se consegue sobreviver seguindo esse caminho já é um outro – cansativo – problema. Saber aonde se quer chegar é mais importante do que saber como. Os detalhes embutem em si um perigo latente, qual seja abandonar um princípio salutar, em troca de cansativas ilusões. Quantidades de maus hábitos, que nos vinculam ao trabalho, impedem qualquer formulação inteligente. Existe algo mais absurdo do que a preocupação com o que fazer durante as férias? Finalmente, é importante dizer que o verdadeiro preguiçoso, o merecedor de aplausos não é aquele que nada faz por passar, com esperteza, a batata quente para um tolo de plantão. Longe disso. Ele intui a inutilidade da agitação supérflua e encontra a alternativa do dolce far niente. Há quem sustente que isso está errado. Na verdade, é impossível ter razão sem estar totalmente errado. Crônica do livro “O Desmonte de Vênus” (Ed. Totalidade, 2009).
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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