Tranqüilamente refestelado na sua poltrona Ababurtinogamerontes curtia um merecido descanso depois das suas andanças pelo mundo. Envelhecer exigia tempo. Quem disse que ele estaria sem tempo? Escravo de suas lembranças, ou a rigor, de recordações de terceiros, desde que bem escritas, tinha tudo, menos pressa. Seu silêncio era daqueles que prenunciavam uma tempestade, ou talvez, fosse ele a própria tempestade a prenunciar um incontrolável mutismo? Enquanto soltava baforadas do seu inseparável cachimbo, examinava cuidadosamente o teto, na esperança de lá encontrar a motivação necessária para novas aventuras. A seu lado, Júnior estava às turras com palavras cruzadas. Como em todas as tardes, Bigulinamerontes, a fiel esposa, estava fora de casa, atraída, desta vez, pela liquidação de algumas bugigangas da caixinha de Pandora. Azar dela, depois não adiantaria reclamar por não ter sido incluída em mais um conto. Fraca compensação, pois, no lar, era ela a detentora do poder, já que o poder fica do lado de quem tem em mãos o controle remoto da TV. Isso ele sabia. Tinha lido neste volume mesmo. E dá-lhe Big Brother... Júnior quebrou o silêncio: – Pai, como se chama aquele que mutilou uma orelha? Myke Tyson tem letras demais. – Experimente Van Gogh... suspirou o pai contrafeito. – Isso aí. Obrigado. – Pai, o que é tristeza? – É quando vem uma visita em casa e toma todas, retrucou Ababurtino com impaciência. – Pai, o que é sorriso? – Cada pergunta! É quando a gente ri de boca fechada para não incomodar os vizinhos. Novamente, o silêncio envolveu o escritório no seu manto aveludado, como diria qualquer autor de prestígio. Ababurtino, é melhor chamá-lo assim por razões de economia, olhou para seu filho inculto e belo e estremeceu ao constatar que estava chegando a hora de orientá-lo na vida. Sabia que tudo mudava e não necessariamente para melhor, de sorte que sua intervenção tornava-se imperiosa. O corpo docente da escola não passava de um corpo decente e isso era muito pouco. Era doloroso ouvir de Júnior que os três mosqueteiros atendiam pelos nomes de Huguinho, Zezinho e Fernandinho Beira-mar, ou que Ricardo III daria seu reino pela egüinha Pocotó, ou seria pelo cavalo de Tróia? Uma nova viagem talvez? Para onde? Pensando bem, talvez levar o menino ao consultório do doutor Jivago fosse mais indicado. Iria ouvir a canção de Lara no elevador e uma opinião abalizada do amigo, uma vez à sua frente, no consultório oval. O telefone tocou. Júnior correu para atender. – Alô... Meu Deus, isso fala! É para você, pai. – Quem é? – Não quis dizer. Quem cala, não fala. – Alô... Alô... Quem é? – Ababurtino soltou um palavrão sonoro – e desligou. Palavrões, é sabido, quebram o gelo melhor que um encontro numa sauna mista. Foi a falta deles que impediu a quebra do gelo no episódio do Titanic, época em que a censura reprimia o uso dessas iguarias da fala. Parafusos frouxos de outros tempos. – Quem era, pai? Não pode dizer? No melhor estilo gaulês, Ababurtino limitou-se a fazer um bico, sem responder. Na verdade, não conseguira identificar o interlocutor. Devia ser mais um trote, nada além de um desses gaiatos que só conseguiam ser grandes quando somados à própria sombra na qual preferiam permanecer. Não valia a pena preocupar-se. Para ele era bem pior constatar que a maior preocupação de Júnior resumia-se em saber qual palavra correspondia ao ‘8 vertical’. Não deixava de ser uma preocupação louvável, se bem que saber o nome com 6 letras de Sebastião José Carvalho e Melo, dificilmente transformaria Júnior em erudito. No máximo aumentaria as chances de ver o rebento brilhando no Show do Milhão, ao identificar o marquês de Pombal, um misto de Mazarino com pit-bull. Preparar alguém para as provações futuras, fazendo-o livrar-se do peso das provações passadas, era o nome do desafio. Por onde começar? Como poderia encontrar a saída do labirinto educacional ele, Ababurtino, que nunca sofrera de labirintite. Fácil como acostumar um boxeador a comer comida chinesa com pauzinhos, sem tirar as luvas. Esperar pela volta de Dom Sebastião, de férias no Club Med de Alcácer Quibir, junto com seu amigo Dorian Gray, não parecia razoável, pois a fila de espera era e é ainda muito extensa. De mais a mais, Júnior iria colaborar, querendo ou não, mesmo porque, não lhe faltaria interesse em caminhar rumo aos mistérios. Com certeza, saberia se livrar da tentação de descobrir inutilidades tais como saber se na corte do Rei Sol, os súditos usavam ou não protetor solar, ou se os quarenta ladrões da história de Ali Babá possuíam ficha de bons antecedentes. A decisão estava tomada. Não haveria interferência alguma. Júnior seria dono do próprio nariz e do restante também, e o cotidiano seria o mestre escolhido. Ababurtino sabia que, da mesma forma que o meridiano de Tordesilhas não conseguiria separar com perfeição o fado da dança com castanholas, ele próprio seria incapaz de erguer uma barreira entre o ensinamento dos mestres e a anarquia da contracultura. Teria de conversar mais com Júnior. Apesar de saber que as palavras voam, o escrito não tem melhor resultado, se ao seguir o exemplo de Anchieta for perpetrado sobre a areia úmida da praia. A opção pelo diálogo suplantou as demais. Pois é, verba volant resmungou Ababurtino. Malditas verbas a desafiar a Lei de Responsabilidade Fiscal, segundo alguns. Convidou o filho para um breve passeio. Precisava caminhar um pouco, por recomendação médica. Uma boa companhia tornaria o passeio mais prazeroso. Vagar nada tinha de programa de índio, mesmo porque a Funai não possui acordo com o doutor Cooper. – Pai, olhe lá uma pedra no meio do caminho. – Que coisa mais linda, mais cheia de graça, filho. Vamos prosseguir. Caminhar é preciso. Melhorará meu HDL e seu apetite. – Vou apanhá-la. Posso usar a mão invisível? – Deixe-a lá, um dia ela será famosa. – A mão? – Não, a pedra. A mão será hostilizada. Pergunte à Vênus de Milo. Ela possui duas mãos invisíveis de tanto roer as unhas. Por sorte, não sofria de coceira como Marat. Já pensou? E qual poderia ser o futuro dela no Olodum? Com certeza, o mesmo que o do Aleijadinho. – Dizem que posou nua para a revista Playboy. – Não, aquela foi a Maja desnuda. Na última hora, dizem, ela passou a perna em Carlota Joaquina que andava algo distraída à procura de um par de chifres que combinassem com o físico do marido, aquele Otelo algo mais manso. Jamais acreditou na carta anônima de Pero Vaz de Caminha. – Mas, que carta anônima era essa se o autor é conhecido? – Esse detalhe passou despercebido aos historiadores, que ficaram ligados no ‘em se plantando, tudo dá, até transgênicos’. O importante, filho, é entender que o conjunto virtude de Dona Carlota era um conjunto vazio, mas desses vazios comme il faut. Pode me dar um outro exemplo de conjunto vazio? – O conjunto de peixes vivos em água fervendo. Daí a pergunta musicada ‘Como pode um peixe vivo viver fora de água fria’. – Ah sim, também conhecido como o princípio da bouillabaisse. É da época dos cinqüenta anos em cinco, quando aumentou drasticamente a produção dos conhaques envelhecidos na base do jeitinho e escoados às talagadas no Cala Bar por van Schöpke que apreciava o chope do Pingüim também. – Entendi... Gostava tanto que, sempre que a família lhe mandava um e-mail pedindo que voltasse para casa, dizia ao portador: ’Diga ao povo que fico’. – Por aí... Já é tarde para falarmos do Descobrimento do Brasil. – Que nada. Esse barato é interessante. Dizem que antes de descobrir o Brasil, Cabral avistou a ilha de Caras. Verdade? – Não há nenhum documento a esse respeito, mas tudo indica que sim. Aquela ilha iria virar a capitania hereditária do consumismo. – Sempre pensei que a ilha dos Amores, lá dos Lusíadas, sabe pai, fosse essa ilha de Caras. Rola o mesmo clima. - Bingo, filho. (a cena se passa antes da proibição dos bingos, é bom que se frise). Ababurtino saboreou, em silêncio, a observação do herdeiro, e fiel à definição de sua autoria, riu de boca fechada, para não incomodar os vizinhos. O menino prometia. Crônica do livro “Sessão da Tarde”, Ed. Edicon. Disponível na Livraria Pega Sonho: Rua Martinico Prado, 372 - Higienópolis - São Paulo - SP - Tel.: (11) 3668-2107.| E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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