Depois de um longo período de águas caindo em profusão o Sol voltou a brilhar em Ubatuba. Isso me alegra. Excesso de umidade é ruim, mofa roupas e embota espíritos. Prefiro clima seco, como o de Brasília. Deputados, senadores e "Nosso Guia" são geniais devido ao ar do Planalto Central, seco como a múmia que vi no British Museum e que tenho certeza de já ter visto antes, em algum lugar do passado. Acho que tivemos contato na minha primeira encarnação humana, quando conheci os rigores da escravidão na corte de Tutmes III. Na verdade, ser escravo não era de todo mau, comida farta, mas pouca perspectiva. No Egito antigo tudo era visto de perfil. Passei anos cuidando de estábulos, até hoje sou alérgico a cavalos, não por causa do cheiro. Tenho arrepio quando me lembro das mordidas. Quando morri tive a honra de ser mumificado. Fui enterrado no Vale dos Reis junto a servidores graduados da corte. Anos depois, já longe da servidão, reencarnado na Europa, ganhando a vida como lanceiro do rei de França, fui acordado bruscamente enquanto dormia enrodilhado nos braços de gentil camareira austríaca. Digo meu espírito foi acordado. Meus companheiros de tumba estavam apreensivos. Um egiptólogo havia descoberto nosso jazigo. Protestei com veemência quando vi minha múmia ser embarcada em um vapor com destino aos Estados Unidos. Tinham descoberto ouro no Oeste americano. Minha carreira de múmia acabou quando os despojos foram lançados na fornalha de uma locomotiva para fazer vapor. Ultraje! Antes de ser humano fui urubu e, antes ainda, cachorro. São Bernardo, gostei dessa vida, conhaque de primeira. Estou pensando em retomar a forma de urubu na próxima encarnação. Tirando a culinária exótica é a melhor forma de viver neste planeta. Voar o dia inteiro sem impostos ou contas a pagar, apenas voar. E namorar, urubus são grandes namoradores, fazem magníficas estrepolias erótico-aéreas enquanto planejam urubuzinhos, que quando nascem são branquinhos e peludos. Até nisso levam vantagem, quando o urubuzinho entra na adolescência muda de cor e vai-se embora. Nada de faculdade a pagar...
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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