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COLUNISTA
Alexandru Solomon
06/08/2009 - 12h10
A ordem dos fatores
 
 

Ser errante, vagava pela rua escura. Seu nome L. Poderia ter sido João. Nos bolsos, nenhum tostão, no coração nenhuma ilusão, na mente, um redemoinho de lembranças. Andanças de um ser sem pátria nem patrão, como diz aquela música. Qual? Ora, procurem e não me apoquentem com detalhes.

Bem que preferia fazer amor e não guerra, embora soubesse que ambos principiavam com uma declaração. Tudo extremamente burocratizado, rápido, avassalador e nada indolor. O que poderia iniciar o ciclo: O amor ou a guerra? Seria o amor responsável pelas guerras, ou a essas sucederia o amor? Qual a verdadeira ordem? Concluiu que tudo não passava de uma seqüência amor, guerra, amor, guerra, sem que alguém pudesse dizer qual a primeira pérola do colar, embora, escolhendo qualquer uma, as restantes se alinhassem, obedientes.

Da última namorada restava apenas uma vaga lembrança. Nem conseguia visualizar-lhe o rosto, pois só coices dela tinha recebido. Um leitor perspicaz diria que já escrevi isso. Exato, mas foi em outro best seller. Com a vulgarização da intertextualidade ser recorrente passou a ser absolutamente normal. Então, se o nosso herói decidisse aceitar que ‘primeiramente, pois tudo precisa ter um princípio, mesmo sendo esse princípio aquele ponto’ que poucos sabem definir, uma vez que, raros são os que se atreveriam a dizer, sem medo de passar por superficiais, qual pérola seria a primeira, ninguém deverá estranhar, estrebuchar ou até estremunhar, ao se deparar com esse tipo de escolha. Pelo contrário, deverá ser um motivo de júbilo, por ter ocorrido tal luminoso pensamento, mesmo que outro ou outros o tivessem dito exatamente com as mesmas palavras, em algum outro glorioso contexto.

A rua rasgava, indiferente, o quarteirão sem se preocupar com alguns buracos, frutos de humores inconstantes de alguma adutora, perfidamente abandonados, a ceifar a monotonia de um traçado retilíneo. Veículos pareciam querer arrastar consigo as ruas poeirentas. Não o conseguindo, limitavam-se a trafegar lentamente. Alguns plátanos margeavam esses cortes cirúrgicos. Por que plátanos? Pela simples razão de ter o autor participado de um leilão de plátanos abandonados, ocasião em que pudera arrematar um lote significativo, com o qual lhe foi possível proporcionar um pouco de sombra ao caminhante soturno. Soturno ou sorumbático, deixando que as impressões colhidas ao acaso, sem preocupação com a ordem, removessem a crispação presente nos rostos esquálidos dos demais transeuntes.

Sem ser cachorro, tinha uma grande atração pelo mercado de pulgas, onde na falta de objetos, procurava alguma ilusão que pudesse dar-lhe a força necessária para prosseguir. O fardo da existência, como dizem os venerandos esgrimistas da palavra, ficava mais leve, sossego do corpo e da alma, possivelmente não nessa ordem.

Homem sem pecados, aqui computados todos os deslizes imagináveis que pudessem ser assim classificados, ninguém poderia imputar-lhe qualquer coisa. Sua folha corrida, poderia ter sido apenas uma folha de parreira, a ocultar a evidência do seu sexo. Essa evidência escancarada estaria reservada para publicações que jamais folheara. Nem toda nudez será castigada, especialmente as cobertas.

O dia amadurecia. Contingentes de pessoas cinzentas passavam correndo de forma desordenada, com pressa para alcançar algum objetivo desprovido de importância, sem nenhum cumprimento, sem nenhum calor, a contrastar com o andar majestático de L.

Faltando-lhe vontade para se apressar, imaginou–se liderando aquela gente, ao menos aqueles que, na mesma calçada, rumavam no mesmo sentido. Poderia, se as circunstâncias o permitissem, tornar-se uma liderança efêmera, pois de imediato os discípulos voltariam à corrida insensata. Os seguidores ultrapassando o guru, sem outro mérito a não ser a insensata perseguição do inatingível. Para que a pressa num mundo de relógios parados, se a recompensa era alcançar lugar algum, povo de poucas idéias, apesar de fixas? A falta de solução embutia o seu corolário, algo forçado, falta de problema, no frontispício de algum portal esquecido. Ausente, apenas a discreta dissonância do ‘de mi bandoneon’ a embalá-lo, seguia a correnteza humana.

Apesar de impoluto, o nosso herói tinha um leve e perdoável vício. Adorava corridas de cavalos. Apostar, então... Era uma adoração platônica. Nunca tinha passado perto de um prado, arriscar uns trocados, muito menos.

Certa feita, não mais tarde do que na véspera, tivera uma intuição fulminante, um palpite irresistível, um sonho arrebatador, durante o qual apareceram três algarismos: 5,4 e 8. Coerente com suas teorias incompreendidas por outros mortais, quebrou a rotina ao tentar a sorte, por obra de um presságio, de um recado entregue por Morfeu, pessoalmente.

Acertou 5,4 e 8 na ordem.

Morava num quarto sala e cozinha em desordem.

Graças ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, nessa ordem, acertara. O prêmio, acumulado durante semanas, era dele, definitivo, tranqüilizador, catártico, sem ordem definida.

Lamentava apenas o fato de a infância, a adolescência e a idade madura não poderem se afastar da mesma ordem, por obra de algum misterioso desígnio, cujo alcance, precocemente, desistira de entender.

Restava-lhe aproveitar o pão, amor e fantasia na desordem. É o que ocorre quando a sorte bate à porta e há alguém para atender, mesmo que seja a faxineira.

Estava voltando para o lar, sem deixar de prestar atenção ao caos reinante. Conservara a pule premiada, sem o menor desejo de receber no mesmo dia. Decidira dormir com o precioso pedaço de papel para melhor saborear uma perspectiva. O corpo cedera ao cansaço, porém, a mente desperta empenhava-se em arquitetar as fantasias mais estapafúrdias. O valor do prêmio, nada desprezível, considerando suas modestas posses, iria equilibrar-lhe as finanças.

Comemorar, devanear e receber o vil metal, nessa ordem era o plano.

A noite durou uma eternidade, a julgar pelas unhas roídas. A perspectiva de tempos melhores incendiava-lhe a mente. Era um bom começo, possivelmente o detalhe que faltava para alcançar um dos inúmeros braços desse ente enigmático, chamado felicidade.

Sabia que à noite mal dormida, pela ordem, seguiria o dia da grande mudança.

Depois disso, na ordem monótona, dias e noites se sucederiam e o iludiriam com um relativo conforto materiaL. No bolso nenhum tostão, apenas o pedaço de papel, passaporte para... Para quê?

Alguma coisa diferente estava prestes a acontecer. Sentiu-se só, a enfrentar a ruptura dos seus antigos padrões. Passou a prestar uma atenção inusitada aos seus movimentos. Progredia, sem esforço. Primeiro uma dos pés, se adiantava e, por uma questão de ordem, ou de equilíbrio, o outro pé o imitava. O pedacinho de papel poderia alterar essa maneira de se movimentar? A rua iria se tornar menos escura, as pessoas menos indiferentes? Dificilmente. Prestações que deixariam de ficar atrasadas, iriam mudar o sentido da vida? Não.

Hesitou e, com uma indizível sensação de alívio, rasgou a pule. Rasgou-a cuidadosamente e a entregou ao vento, para que levasse para bem longe os números... em desordem.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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