Sonhei que tinha morrido. Não me recordo do quê. Enfarte, acidente, susto, bala ou vício. Fui direto para o céu. A coisa é bem menos burocratizada do que eu imaginava. Um senhor elegante me recebeu, serviu água, cafezinho e me enviou ao portal dos ateus. Lá me deram uma identidade cósmica e um passe para o navio celeste que me levou à definitiva morada. Gostei da casa, estilo despojado, clean, me senti confortável. Bom lugar para passar o resto da eternidade ao som de harpas e trombetas. E cacarejos, será que eu tinha escutado direito? Muitos cacarejos. No quintal dos fundos, encontrei as galinhas. Milhares delas. Sentei-me num banco de madeira e me pus a meditar sobre a vida e a morte enquanto as aves passavam por mim, por cima, por baixo, pelos lados, todas à minha volta. Pareciam me reconhecer. Notei a presença de um pato no meio das penosas. Tive um pressentimento de que as galinhas me eram familiares, como eu era a elas. Em certo momento um galo empoleirado na cerca cantou como que pondo ordem na casa. Chicken a la King. Uma voz ressoou em minha cabeça. Disse alto e em bom som e repetiu algumas vezes, até eu entender. Chicken a la King. Edifício Itália, 1969. Foi o meu pedido num jantar em que eu não me senti à vontade. A galinha, digo o frango abatido em minha honra tinha se transformado em propriedade eterna. Os mistérios começaram a se desfazer, reconheci frangos xadrezes, frangos assados, espetinhos, coxinhas, canjas, estavam todos e todas lá, de moela em punho. Satisfeito com a descoberta continuei caminhando a explorar a propriedade. Um lago, que maravilha, eu agora tinha um lago. Ao chegar perto reconheci a tainha da festa do Pedro pescador de 1971. Meus peixes, o lago estava abarrotado de sashimis, sushis e bacalhaus que devorei em gula pantagruélica. Continuei andando, em algum lugar daquele imenso espaço deveriam estar as mulheres. Os latidos da cachorra do vizinho acabaram me trazendo de volta. Sonho estranho, a última coisa da qual consigo me recordar é de uma placa indicativa: alameda dos suínos.
Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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