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SEÇÃO
Crônicas
08/10/2006 - 17h19
O cão enigmático
Moacyr Scliar - Agência Carta Maior
 

Cachorros estão em alta. É só observar o número de pet-shops pela cidade para constatá-lo. E isso não é uma coisa local: é um traço da cultura do Ocidente. Semana passada eu comentei que a Honda agora oferece carros que, em vez de assentos para bebês, têm acomodações para cães. Ou seja: à medida que decresce a natalidade, as pessoas passam a cuidar mais de seus bichinhos de estimação. Com certa vantagem, dizem algumas más línguas: os bichos seriam menos ingratos que os filhos. Polêmicas à parte, a dama com o cachorrinho que deu título a um famoso conto de Tchekhov hoje é uma presença constante em vários lugares. Outro dia, num vôo, observei a preocupação de uma senhora com seu cãozinho. Ignorando a recomendação da aeromoça, ela havia tirado o bichinho de sua gaiola e tentava colocar nele o cinto de segurança. Falando o tempo todo: "Não te assusta, querido, a mamãe vai cuidar de ti". E cuidava mesmo.

Cães não são, claro, unanimidade. Todos sabem, por exemplo, da tradicional rivalidade entre carteiros e cachorros. Na tarefa de entregar a correspondência, os dedicados funcionários da EBCT têm de enfrentar vários obstáculos, e os cães não são os menores deles. Com a insegurança que reina hoje nas cidades brasileiras, os animais são treinados para se transformarem em verdadeiras feras. Nem sempre em defesa própria; tempos atrás ZH contou a história de um rapaz que, em Tramandaí, usava um pitbull para assaltar pessoas. Mesmo quando estão trancados, os cães não deixam de latir, de rosnar, e de olhar feio para os carteiros, e não só para os carteiros - para os transeuntes em geral e para o pessoal que caminha. Que hoje representa um contingente ponderável da população, gente que recorre ao exercício para se manter em forma.

Sou uma dessas pessoas. Mas não caminho apenas por uma questão de saúde; caminho porque esta é uma maneira de descobrir a cidade, de observar as coisas que estão acontecendo. Assim, vario os meus trajetos. Um deles me leva por uma rua onde existe uma casa com cachorro. Não sei qual a raça, mas é um enorme animal, preto, e com aspecto verdadeiramente assustador. O seu latido é capaz de partir as vidraças por toda a vizinhança.

Eu poderia, naturalmente, transitar pela outra calçada. Mas não faço isso. Passar pelo cachorro transformou-se numa espécie de jogo. Porque às vezes ele investe contra o portão, furioso, e fica ladrando sem parar. Mas outras vezes simplesmente fica me olhando, imóvel.

O que não deixa de ser intrigante. O que leva o cachorro a latir ou a não latir? É alguma coisa comigo - ou alguma coisa com ele? Pode ser que em determinadas ocasiões o bicho esteja com ânimo belicoso - e aí, dê-lhe latido. Ou então está em paz com o mundo, ou ainda sem vontade de latir. Agora: pode ser que o cão me interprete à sua maneira: hum, esse cara está pensando bobagens, tenho de adverti-lo latindo; ou então: hoje o cara está numa boa, vou deixá-lo passar em paz.

Tenho pensado em falar com algum carteiro; talvez eles, que trazem tantas respostas nas cartas, possam me esclarecer a respeito. A alternativa seria um psicanalista de cachorros. Alguém conhece um?

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