O multibilionário Amador Lampretska foi encontrado morto ontem, aos pés de sua cama, com um frasco aberto de aroma de bolo de fubá junto ao nariz. Indícios apontam como causa mortis uma parada cardíaca por overdose, e peritos investigam as possibilidades de suicídio ou morte acidental. Ao mencionar, em programas de auditório e entrevistas coletivas, que possuía um caminhão de lembranças, sabe-se agora que o megainvestidor estava sendo literal em sua afirmação. Algumas horas antes de sua morte, a imprensa noticiava que um caminhão baú, carregando centenas de milhares de frascos de memória, havia tombado no km 271 da Rodovia Regis Bittencourt. A residência de Amador era o destino da carga, segundo o motorista, que teve ferimentos leves. Patrimônio frágil e de valor incalculável Como se sabe, a cada vez que um frasco de memória se abre há uma perda na força do aroma, em contato com o ar do momento presente. Assim, é preciso planejar e racionar o número de vezes de abertura da tampa, evitando as áreas muito abertas, o vento forte e deixando que a saudade se acumule até o limite do insuportável. Lembrando que, quanto mais intenso o esforço de aspiração, menor o aroma remanescente para a inalação seguinte. É de conhecimento público que toda a imensa fortuna do bilionário, estimada em 4,6 bilhões de reais, foi sendo ao longo dos anos totalmente revertida em frascos de memória. O que não se supunha é que eram tantos, a ponto de abarrotarem a carroceria de um caminhão de grande porte. À revelia dos herdeiros, Lampretska se desfez de um patrimônio que parecia inesgotável - composto por milhares de imóveis espalhados por todo o planeta, investimentos em renda fixa e variável, participações acionárias em multinacionais de diversos setores, centenas de veículos e obras de arte valiosíssimas - para aplicar tudo na coleção de recordações olfativas, restando-lhe apenas a roupa do corpo e uma kitnet na periferia de Taboão da Serra, onde habitava sozinho e inadimplente nas suas despesas básicas, como energia elétrica e plano de assistência médica. Esta é uma obra de ficção.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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