A cabeça rodou, o corpo ardeu, o sangue ferveu: era a cena do beijo. Acuada, ela andou em vaivém feito fera enjaulada. A sala 4x4 não comportava sua ira, nem diluía o veneno gotejando na garganta. Abriu as janelas, o calor sufocava. A cena do beijo... Não ia engolir, não conseguiria. Fechou os olhos, redesenhou o rosto do Judas a sorver a boca da diaba. Quando a avisaram sobre os dois no restaurante, uma risada esganiçada retumbou no ar, arranhou o verniz das portas, estilhaçou a luminária do teto. Partiu para a ronda noturna: era tudo verdade. Na volta pra casa, ensandeceu. Num ímpeto, deslizou o braço pelo balcão coalhado de bibelôs. Quebrar era bom. Era muito bom! Fortalecia o ego, elevava o poder, exorcizava o ódio e fazia barulho. Era bom o ruído dos cacos se partindo! Também estava partida... Toda esfarelada, picada, triturada, moída pela cena do beijo... A fúria não se esgotava. Buscou algum objeto que lhe devolvesse o equilíbrio. Garfos! Eram pequenos. Martelos! Socavam pouco. Espetos! Cegos de corte. Facas! Empunhou a maior que achou, e brandiu-a no ar. Comprimiu o objeto contra a face. Fechou os olhos, viu de novo a cena do beijo. Ordinários! A lâmina relampejou perigosamente. Foi um golpe só... O cisne de louça sobre a mesa se espatifou contra a parede, a raiva foi junto. Na casa do vizinho botaram pra rodar um vinil de Demis Roussos: Shadows tinha o poder absoluto de acalmá-la. Amava aquela canção. Lá fora a noite era breu, mas uma tímida lua começava a boiar dentro dela. Aquilo era recomeço.
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