O grito do Ipiranga
- O senhor também pinta parede, hein? - Ah, ah, ah, ah! Não, só quadros. Sou um artista! Agora não se mexa, fique parado aí. - Tá bão. - Eu fiz tudo lá em Florença, por encomenda do Imperador Dom Pedro II. A intenção é enaltecer o feito do pai dele, o grito da Independência, compreende? - Compreende. - É "compreendo" que fala. - Mas o senhor falou "compreende". - Olha, chega mais perto do quadro. Tá vendo aqui, no canto esquerdo, embaixo? Eu tinha pintado mais soldados, todos formando um círculo em torno do Dom Pedro I. Coisa bem marcial, triunfante! Mas sabe como é o poder, né... seja ele monárquico ou republicano. - Sei não senhor. - Eles quiseram que colocasse na pintura alguém do povo, um cabra bem sofrido mesmo, para representar os desvalidos. - Desva o quê, Seu Américo? - Meu nome é Pedro Américo. - Mas Pedro não é o imperador que o senhor acabou de falar aí? O um e o dois, o filho e o pai, não é isso não? - Pois então, a pintura na verdade já estava prontinha, sabe. Só que aí acharam a cena "oficial" demais. Mas deixa pra lá, até eu explicar a história toda vai estourar o meu prazo de entrega da obra. E nem vem ao caso a gente ficar perdendo tempo com isso. Bom, volta lá pra sua posição - camisa aberta, peito estufado pra frente, braços pra trás, cajado na mão e sempre olhando pra sua esquerda, faz favor. Como se você estivesse vendo o Dom Pedro dar o grito da independência. - Mas vai com essa camisa toda rasgada mesmo, é? Vou sair feio, Seu Américo. Carecia de arrumar uma camisa mais bonita, engomadinha. - Deixa comigo que eu sei o que estou fazendo. - O senhor falou que ia pintar um carro de boi atrás de mim. Mas só tá pintando eu... - O carro de boi eu tenho referências. O que faltava era um brasileiro típico, miserável, pobretão. Para não correr o risco de ficar com cara de europeu, o Império liberou uma verba gorda para que eu viesse ao Brasil e retratasse uma pessoa como você, que existisse de verdade. Entendeu agora? - Entendeu. Esta é uma obra de ficção.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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